O medo do vir a ser | Paulus Editora

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Psicologia e Sociedade

05/09/2016

O medo do vir a ser

Por Gustavo Trevisan

Muito me inquieta quando em uma conversa o discurso é repleto de saudosismo. Verdade ou não é que algumas pessoas costumeiramente dizem que as coisas eram muito diferentes antigamente. Claro que eram, tudo muda! Só de pensar que poderíamos ter sido amebas, quem dirá o tamanho e sabor do Big Mac.

Longe de uma análise superficial, o que me inquieta não são os sintomas, mas as motivações, que são como rastros de histórias subordinadas a lembranças de carga afetiva. Não ignoro o fato de que a proximidade da finitude da vida faz florir sem controle o passado, afinal, é ele que dará sentido ao fim que está por vir. Mas não é exatamente essa a minha questão. A angústia não se manifesta somente na certeza do fim, mas também na incerteza do que está por vir. Isso talvez explicaria o discurso saudosista de um adolescente, cuja morte é distante e incompreensível.

Embora nem todas as teorias da psicologia admitam o passado como objeto de estudo, também não negam que existe nele uma força que, mesmo conhecida, é sustentada pelo seu mistério.

A psicanálise entende que a força do que passou irá subordinar o que virá. Acreditamos que o tempo e as lembranças são o que tornar-se-á, e a isso chamamos memória. O tempo, inclusive, também é subordinado a lembranças; aliás, o tempo se confunde com ela.

Ouso até dizer que a felicidade é prisioneira expectadora do tempo, não só a felicidade, mas também a angústia. Sem a lembrança, a ansiedade não tem sentido, bem como os sonhos. Ora, por que falar de tempo? Lembranças? Perceba se não é a memória a força propulsora que molda a nossa identidade. É o que passou, o que vivemos e experimentamos que nos define.

O fato, amigos leitores, é que nós somos frutos da construção da memória. Portanto, o que nós produzimos, também o somos. O que se manifesta no tangível tem a concretude da subjetividade ao longo da história, e, sem menos, a subjetividade também é consequência da memória.

Que força é essa que me permite escrever e você ler, senão a memória?

Vivemos o hoje, assumimos seus conflitos, que só existem porque houve um passado que se perpetua por meio da memória. Se tememos o futuro, se ele nos pune sem ao menos existir, é porque ali reside a memória.

O que faz o futuro ameaçador se não a ideia de ser um passado em potencial?

Por isso, o que carregamos, em parte, será aquilo de que iremos fugir. A memória, e não o esquecimento, é a grande causadora das neuroses.

Se os neuróticos sofrem de reminiscências, como diria Freud, a sanidade psíquica bem que se deve, em alguma coisa, alimentar-se do esquecimento. É o meu passado que me assusta no futuro. O medo de repeti-lo. O desvio que eu mesmo construí me acompanha, e torna-se conteúdo que se configura em projeções mnêmicas.

A palavra liberdade nunca olhou para a frente, mas sempre para trás, porque é lá que ficamos presos, aliás, mais que presos, condenados. Um futuro sem medos não está associado a um passado sem dores, mas à maneira pela qual lidamos com as projeções e ao significado que damos a tudo o que vivemos.

O prazer e a sanidade estão justamente em transgredir o passado, dizendo a ele: “Você não me pegou! Fui mais esperto que você!”.

3 comentários

5/9/2016

Regina Céli Whitaker

Gostei da reflexão! E até diria: se é que existe liberdade, a construção da autonomia e do respeito à própria individualidade ficam comprometidas quando deixamos que o passado seja nosso presente!

5/9/2016

ALVINO DA SILVA

Caro amigo Gustavo Trevisam. Com todo o respeito que você merece, humildemente manisfesto meu parecer, que tenho após 71 anos de vida, dos quais, tiro os primeiros 14 anos. que com certeza são de boas lembranças; e não me causam em absoluto qualquer medo. E quem tem medo é porque não tem o Pai Criador no coração. Para tanto sugiro ler da Bíblia; o Livro Sabedoria , cap.12, 1-27 e a Carta de Paulo ao Gálatas, III - Conseqüências Práticas. Exortações; cap 5, 1-26. E se quiser se aprofundar, faça um levantamento sobre os versículos sobre o ter "medo". Não temos medo e lembramos com alegria o passado e nos preocupamos em fazer bem feito o presente do dia a dia. Pois a cada dia, carregamos a cruz com prazer e obediência a Palavra com caridade. Difícil é, mas não impossível, e, para isso, aceitar uma graça do criador que é muito simples ..."FÉ".

16/10/2016

Ricardo

Interessante, mas um tanto curto para ser profundo. Há de fato muitas situações a serem analisadas e a diversidade de cada um em lidar com tais situações. Tudo nos molda ou talvez o molde seja a nossa escolha diante de tudo o que nos acontece ou à nossa volta. Porém, as questões factuais da vida presente, não se encontram em um passado obscuro e esquecido, nem em um futuro incerto, fruto deste passado. As questões factuais dependem em absoluto do instante momento e nossas escolhas! Um simples entendimento é capaz de mudar tudo! O entendimento do valor das coisas. As pessoas têm objetivos vazios e desejos egoístas! Falta-lhes um PROPÓSITO!! Exatamente! Quando não damos um propósito a tudo o que temos é desejamos ter, não possuímos nada, ao contrário; somos possuídos pelo propósito das coisas que temos. Um exemplo disso é a constante mudança das coisas. Todo ano um modelo novo de celular, um modelo novo de carro, uma coleção nova de roupas; e por aí vai. E o que as pessoas dizem? "- Eu preciso muito disso! Eu preciso desse novo celular (mesmo possuindo um modelo atual), eu preciso de um carro novo ( mesmo tendo comprado um carro novo recentemente), eu preciso de roupas novas, isso me faz feliz!" As pessoas, não dando um propósito para tudo o que têm, não conseguem ser felizes com o que são. Assim, tornam-se escravas do propósito das coisas, necessitando de coisas novas o tempo inteiro para manterem um falso sentimento de alegria! Deus deu ao homem o direito de dominar sobre o mundo, mas o homem tem sido dominado pela falta de propósito em seus objetivos! Por isso vemos pessoas tão mal resolvidas hoje em dia, desesperadas por terapias, cursos, grupos, religiões, enfim; por algo que dê um propósito às suas vidas, já que elas mesmas não o conseguem fazer! No mais, ameba não né, Deus criou tudo perfeito e acabado e desde o princípio, o mundo caminha de uma condição de ORGANIZADO para uma condição de DESORGANIZADO! Abraços