Pela rede, Brasil afora

Autor: Alberto Nascimento

EM SUA PRIMEIRA INVESTIDA DE ATUAÇÃO ON-LINE, O PROGRAMA DIREITO E CIDADANIA CRIA UMA NOVA FORMA DE REALIZAR SUAS FORMAÇÕES

Ainda no primeiro semestre de 2020 ficou evidente que este seria um ano atípico. De pronto, qualquer tentativa de declarar o ano como incomum tornou -se um refrão batido e redundante; mesmo a tentativa de qualificar as adaptações como “novo normal” se revelaram rapidamente como outro lugar-comum facilmente desgastável. Mantendo sua proposta de servir como ponto de referência diante das mais diferentes intempéries surgidas no cotidiano de atendimento dos Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, o Programa Direito e Cidadania (PDEC) da PAULUS optou por seguir pela nova rota que aos poucos se desenhava nessa tempestade, reconhecendo a necessidade irrefutável de abrir mão de sua tradicional estrutura de formações presenciais e desbravando o caminho das capacitações on-line. 

“Foi uma experiência muito inusitada pensar em fazer algo tão inovador na área da Assistência Social no meio de uma pandemia. Estava todo mundo meio perdido, e a gente sente que às vezes nós fomos um acalento. Mas foi muito interessante”, declara Anne Caroline, orientadora social no Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos “Formando Cidadãos”, mantido pela PAULUS na Vila Mariana em São Paulo/SP. 

Anne foi um dentre os vários profissionais que toparam o desafio de fazer parte da equipe de formadores do PDEC neste último ano. Atendendo a necessidade do momento, a reinvenção do programa resultou em uma reestruturação; no lugar das suas formações clássicas, foram realizados cinco percursos formativos orientados por temas essenciais no cotidiano dos Serviços de Convivência: Comunidade, Empatia, Família, Gênero e Regionalidade. “Muitas vezes a gente se debruçava por muitas horas em alguma questão, e o grupo de orientadores pensava em como lidar com questões que são bem delicadas, até tabu para algumas pessoas”, completa Anne, que atuou na oficina com o tema “Gênero”. 

Mira Lopes, analista de projetos na Assistência Social da PAULUS, atuou na equipe que orientou a oficina com o tema “Comunidade”. Ela compartilha um pouco da experiência: “Inicialmente teve muita insegurança por saber que estaríamos lidando com pessoas de diversas partes do país. O grupo da organização conversou e definimos que 

iniciaremos a formação com uma apresentação da ideia de ‘comunidade Brasil’, do que é o país e qual lugar ele ocupa nessa comunidade internacional: quais são os aspectos políticos, econômicos e sociais que constituem o que ele é hoje; como diversos aspectos ao longo da história desse país o trouxeram para este lugar e como as problemáticas que existem resultam no que a gente chama hoje de ‘comunidade’, além do sentido estrito da palavra. Normalmente, quando se fala em ‘comunidade’ no Brasil, a gente vai para esse campo da margem, da periferia… Então a gente quis apontar além desse elemento, falando do Brasil como parte da comunidade global”. 

A formação on-line conseguiu garantir que o PDEC mantivesse, mesmo diante da impossibilidade de eventos presenciais, sua tradicional atuação em todas as regiões do país. O novo formato contou com a participação de mais de 500 trabalhadores do Sistema Único de Assistência Social espalhados por 12 estados e Distrito Federal. 

A orientadora social Iraci Oliveira compartilha a experiência de aprendizagem que foi debater seu tema escolhido com pessoas de todo o país e comenta como a distância virtual ressignificou sua noção de proximidade: “Escolhi o tema ‘Família’. É um assunto com o qual me identifico muito por ser um dos eixos que a gente trabalha no Serviço de Convivência. Uso bastante essa temática nas minhas atividades com as crianças e adolescentes. Mas, em particular, escolhi esse tema porque eu me vi vivendo isso junto, quando a conversa começou a abordar o que estava acontecendo neste momento com as famílias. Eu perdi meu pai para a Covid, para essa doença que causou esse momento tão diferente. Meu marido perdeu o emprego por conta do isolamento. Ficamos aqui em casa com dois filhos adolescentes. Então tivemos que aprender a lidar com conflitos e a reinventar nossa dinâmica familiar. Eu estava bem no auge de todas essas sensações de luto e de luta que vieram em decorrência desse isolamento: não tive como escolher outra coisa”, diz. 

Lilian Souza, orientadora social que atuou como formadora na oficina de “Empatia”, reforça a importância da pluralidade geográfica dos participantes das formações: “A vantagem da atividade on-line é essa possibilidade de ter várias pessoas de várias regiões falando ao mesmo tempo. Todo mundo ter voz, estar ali se vendo, trocando… Acho que essa formação virtual foi muito interessante por isso: várias pessoas de diversos locais se encontrando em um espaço único”. 

Fabio Maganha, supervisor do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos “De Olho no Futuro”, mantido pela PAULUS em Osasco/SP, compartilha dessa leitura. Ele atuou como formador na oficina do tema “Regionalidade” e pontua alguns obstáculos do formato à distância: “A maior dificuldade é não saber se o que estamos tentando comunicar está chegando ou não ao receptor, isto é, sinto falta da retroalimentação espontânea que acontece naturalmente quando estamos presencialmente. Tive que me acostumar com o ‘barulho do silêncio’ entre uma interação e outra. Todavia, pude compreender que o silêncio é tão importante quanto as pausas que ocorrem na partitura da vida. Ainda assim, sinto falta do calor do presencial, o corpo falante, a avaliação retroativa, a transmissão viva, a resposta que transforma e é transformada pela dialética dos olhares, dos sentidos, do sentir um ao outro”. 

Outros problemas também ficaram evidentes com esse formato, como a participação fragmentada, o áudio que não funciona, a internet que cai, os problemas na câmera e outros diversos arranjos que precisam ser feitos para garantir a participação. Mesmo assim, alguns benefícios são claros, como o alcance e a escala das atividades e algumas comodidades. 

No modelo tradicional da PAULUS, os locais dos processos formativos são geralmente providenciados pelos parceiros, que estão localizados em territórios estratégicos e normalmente garantem a participação de representantes de vários municípios vizinhos. Isso é positivo porque se consegue tratar de tramas, tendências, dificuldades e potencialidades de regiões semelhantes. Mas o online pulverizou tudo, demandando uma ampliação das abordagens. A melhor parte é essa: poder alcançar um número mais diverso de pessoas de comunidades diferentes. 

“Um problema evidente é que nem todo mundo tem acesso fácil à internet. A gente trabalhou com várias regiões, então houve muitos depoimentos sobre uma conexão precária”, sinaliza Iraci. Ela prossegue: “Falamos sobre as dificuldades que as pessoas encontram em poder conectar as famílias, seguir e dar conta das demandas do Serviço de Convivência. Nesse modelo on-line ficou muito difícil. Eu sou uma daquelas pessoas que se identifica mais com o olho no olho, que prefere o presencial. Gosto do toque, gosto do olhar, gosto do cheiro… E a gente não consegue nenhuma dessas coisas nesse formato on-line. Por outro lado, muita gente que talvez não conseguisse participar de uma formação por morar longe e não poder se deslocar consegue ‘comparecer’ por só precisar se conectar. Como tudo na vida: tem ganhos e perdas”. 

Anne pontua o quanto essa diversidade geográfica foi enriquecedora também para sua oficina de “Gênero”: “É importante trazer a oportunidade de diversas pessoas do Brasil vivenciarem e debaterem esse tema. Isso é enriquecedor não só para os participantes, mas também para quem orienta. Eu pude aguçar meu ouvido para a escuta de diversas realidades. Falei bastante na formação sobre não criar bolhas dentro de bolhas e, ao falar isso, eu mesma me questionei sobre esse movimento. Foi bom entender que a normalização de certos temas não existe em todo lugar”. 

DE LÁ PARA CÁ

Ao avaliar qualquer processo formativo, o mais comum é voltar os olhos para o aprendizado obtido pelos participantes. Todavia, igualmente relevantes são as novas perspectivas surgidas nos formadores que orientaram o processo. Essa aprendizagem demonstra tanto a eficiência da horizontalidade metodológica utilizada como também sedimenta a capacidade do formador para atuações futuras. 

Lilian compartilha alguns dos elementos apreendidos nesse processo: “Aprendi muitas coisas nessa formação, sobre troca, sobre compartilhar, sobre ouvir outras ideias que não estavam em concordância com as minhas e como trabalhar outras visões a partir disso. Foi super rico, uma troca muito gostosa. Foi incrível trabalhar com outras pessoas nesse sentido de compartilhamento e discordâncias, e que bom que houve as discordâncias, pois isso gerou crescimentos em relação à consciência e reflexões”, diz. 

“Meu maior aprendizado nesse meu momento foi parar para ouvir e criar minhas conexões e identificações com tantas outras realidades ocorrendo com tantas outras famílias”, aponta Iraci. “Teve muita troca, escuta de realidades divergentes acontecendo em cada local, cada região, cada família, cada instituição. Eu aprendi que a gente pode se reinventar e inventar novas formas de dar conta de novas demandas e coisas que vão surgindo no nosso cotidiano”. 

Todos os entrevistados e demais participantes ouvidos apontam alguns aprendizados como, por exemplo, o poder da escuta ativa, que pode transformar vidas e preconceitos alienados em conceitos que nos ajudam a refletir sobre a inteireza de se estar no mundo e sobre o quanto somos seres regionais, universais e interdependentes. Citando o geógrafo Milton Santos, podemos afirmar que “a força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos que apenas conseguem identificar o que os separa e não o que nos une”. 

Os encontros do Programa Direito e Cidadania oportunizaram muitos aprendizados. Individuais e coletivos. O compartilhamento de ideias, sensações, contextualidades e virtudes serviu para reforçar mais ainda o compromisso desses profissionais com seus territórios. A atividade também reaviva a necessidade da Política Pública de Assistência Social como motor da história coletiva daqueles que dela necessitam. “Na minha singela opinião”, acrescenta Fábio, “os resultados mais interessantes na formação foram a valorização da diversidade, a identificação das semelhanças e a autonomia do grupo ao construir, para a culminância da formação, uma narrativa regional, sem deixar de ser universal”. 

“Sobre os resultados”, retoma Mira, “não dá para fugir de algo em que acredito desde o começo. Quando se apresentou essa proposta do Programa Direito e Cidadania atuar on-line com essa estrutura, pensando da perspectiva da Assistência Social, eu vi como um ‘super percurso’, dentro da metodologia do que a gente desenvolve nos atendimentos. Eu não poderia ter outra ideia quanto ao resultado do percurso senão ele mesmo. Independentemente dos resultados, do que foi produzido, para mim o mais significativo é o que acontece dentro do percurso. E para entender isso tem que ir; só estando lá para ter uma compreensão do ganho, do grande resultado do que foi esse processo. Essa troca, esse descortinamento de muitas ideias, que às vezes a gente toma como lugar-comum, gera impactos inesperados em quem participa”. 

Apesar do cenário negativo que disparou a necessidade de uma formação à distância, Iraci também observa o outro lado: “Nós conseguimos tirar algo de positivo desse caos todo que foi essa pandemia. Se nós não tivéssemos esse período de isolamento, não teríamos a oportunidade de desenvolver esse trabalho. Estaríamos na nossa atuação cotidiana sem esse momento de troca, sem esse compartilhar de saberes e fazeres”. Anne concorda, e complementa: “Antes desse momento a gente pensava que a convivência digital não era tão verdadeira quanto a real. Porém, esse ano a gente conseguiu finalmente, forçadamente talvez, entrar na era digital. Todas as gerações entraram na era digital, mesmo que tenha sido na marra. Não necessariamente no sentido de inclusão digital, mas no sentido de que muitas pessoas tiveram contato e somente o contato digital. Para quem não tem o contato físico, isso foi importante e imprescindível nesse momento”.

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