Os dias eram assim

Autora: Lilian Gibin

Lugar silencioso, sons apenas de passarinhos, gatos, cachorros soltos na rua… Eu observava tudo e pensava: “Não acontece nada neste lugar de dias longos e desertos”. Mas tudo acontecia na minha imaginação! 

Meu pai saía para trabalhar e meus irmãos, quando voltavam da escola, brincavam na rua de queimada, pega-pega e futebol. Isso era coisa de menino, mas minha irmã quebrava as regras e dizia: “Eu também posso jogar!”, e passava a tarde em meio à molecada. Eu e minha mãe ficávamos em casa, ela sempre ocupada com os afazeres do lar enquanto eu explorava o quintal criando meu mundo: conversar com as formigas, subir no pé de jabuticaba… Lá sim era minha verdadeira casa, com galho-quarto, galho-sala, galho-cozinha e galho-banheiro. Às vezes subia tão alto que conseguia olhar por cima da copa da árvore. Quando se é criança, tudo parece ser gigante… 

Às vezes minha mãe me autorizava a ir até a esquina, no bar do Sr. Rubens, buscar um doce, enquanto ela me esperava na varanda, sentada, fazendo frivolité, uma espécie de renda feita em linha com uma agulha chamada navete. Nomes estranhos! Mas o importante é que no auge dos meus 3 anos de idade eu podia sair do portão para fora. Minha mãe gritava: “Cuidado para atravessar a rua!”, e eu olhava para os dois lados e pensava: “Será que tenho que esperar aparecer um cavalo, uma charrete ou um carro – o que era mais difícil aparecer por lá – para depois poder atravessar?”. Alguns segundos eram suficientes para saber que podia atravessar em segurança. Não passava ninguém na rua. Chegando ao bar, o que mais chamava minha atenção não eram os doces (chupeta vermelha de açúcar queimado, maria-mole, casquinha com maria-mole que tinha um anel grudado, doce de leite, doce de coração de abóbora…), mas sim o que ficava em cima do balcão e eu só de longe conseguia enxergar: eram os ovos de galinha coloridos. Azul, amarelo, rosa, verde… Pensava que no sítio da minha nona só tinha galinha que botava ovos brancos… Só depois de muito tempo fui conhecer o corante anilina, que se colocava na água para cozinhar os ovos e deixar sua casca colorida. 

Os 5 minutos eram o suficiente para essa jornada, e voltava correndo com medo do homem do saco. 

Algumas figuras muito tradicionais da zona rural apareciam uma a uma, de tempo em tempo: homem na charrete, homem a cavalo, homem no alto-falante vendendo frutas, homem tirando mato da calçada, homem com gaita vendendo sorvete e um homem que tinha matado a mulher. Diziam: “Foi crime passional!”. Matar eu sabia o que era, mas não sabia o que era “passional”. Devia ser coisa boa se ele estava lá vivendo tranquilamente sua vida, então achava que estava tudo certo. 

Mas o que quero contar mesmo é que, em todos os finais de semana do mês de agosto, a pequena cidade de Joaquim Egídio (hoje distrito de Campinas) fica diferente. Era o momento tão aguardado, a Festa do Padroeiro, a Festa de São Joaquim. Ah, que lindeza! A rua ficava movimentada, tinha gente de toda parte, quer – messe, pau-de-sebo, muitas bandeirinhas e as atrações especiais, como o desfile de cavalos, com todo destaque e atenção para a procissão de andor com o Santo Padroeiro, saindo pelas três ruas e abençoando nossa vila! Muita música e violeiros ajudavam a festejar o tempo mais aguardado. Nesses dias, meu pai ajudava na organização da festa. Acho que tenho a quem puxar, sou festeira, e uma festa com tradições populares ainda toca profundamente meu coração. Fiquei até meus 6 anos morando naquela rua da igreja, local onde tudo acontecia uma vez ao ano. Quando mudamos para Campinas, a adaptação foi longa; tudo inspirava cuidado e ao mesmo tempo novas descobertas. Logo me chamou atenção o bairro Taquaral, com sua lagoa onde as pessoas caminham, se encontram, fazem piqueniques. 

Nunca pensei que em meio a uma pandemia o tema “Regionalidade” fosse despertar em mim as melhores memórias. Conheci gente de várias regiões, o que provavelmente não seria possível se os encontros fossem presenciais. Sentimos uma energia boa entre nós e o mesmo objetivo de partilhar conhecimentos, experiências e mudar o mundo, ou pelo menos o nosso mundo, começando pelo respeito a todos que faziam parte daquele encontro virtual. Houve algumas interferências pela qualidade da internet, mas nada que tenha impedido as trocas de conhecimento. 

Os encontros semanais durante esses três meses foram ricos em reflexões. Deparamo-nos com figuras importantes e estudos relevantes, que apontam as prováveis causas das desigualdades sociais, responsáveis por outro tipo de distanciamento social em nosso país. Como conviver com tanta desigualdade? Quais caminhos precisamos percorrer para fazer a nossa parte como educadores sociais? Acima de tudo, o que podemos fazer como cidadãos da nossa terra? 

Aprendemos uns com os outros em momentos encantadores: janelas abertas para lugares nos quais não existia a pandemia, pelo menos por algumas horas. Rafael, com sua rabeca, tocou e nos tocou com seu sotaque do Nordeste e falou sobre seu conterrâneo Fabião das Queimadas, poeta, escravo que comprou a própria alforria, também tocador de rabeca e cantador brasileiro. São João da Mata, cidade da Mari, no melhor estilo interiorano de Minas Gerais, um lugar que preserva as tradições da Folia de Reis e das Congadas, um paraíso cultural. Ícaro, jovem gaúcho, enriqueceu nossos encontros com as tradições de músicas, danças e vestuários ainda muito presentes na formação das crianças e adolescentes de sua cidade, centro de tradições que fortalecem a vida naquela região. E a Taiada… Ah, essa deu o que falar! É um doce que Rosana e Vivian nos contaram ser tradicional em Caçapava, na região do Vale do Paraíba, em São Paulo. Até a receita mostraram e ficaram de enviar pelo correio para saborearmos essa delícia feita de melado de cana-de-açúcar, farinha de mandioca e gengibre. Estou esperando chegar aqui em casa e depois conto o que achei. 

“Conheci” o bairro de São Mateus em São Paulo, um lugar que mostra todo contraste da desigualdade social, sob o olhar atento e sensível da Eliane. Algumas ações concretas realizadas ali valorizam a vida de crianças e jovens daquele lugar e nos fazem pensar como temos inúmeros bairros como esse espalhados por todo o Brasil, uma realidade que se perpetua a cada vez que uma criança nasce e lhe é negado o direito a moradia, alimentação adequada, saúde, escola, lazer e cultura para que ela possa se descobrir e descobrir novos caminhos para sua vida. Daqui de Campinas/SP apresentei o Movimento das Minas, um coletivo de mulheres com o objetivo de informar e conscientizar a população sobre a questão da violência contra a mulher. Eu escolhi esse tema em homenagem a Thais, que foi menina primavera, ou seja, uma menina atendida pelo Grupo Primavera, instituição na qual atuo como coordenadora de projetos voltados ao público jovem. Em 2019, aos 21 anos, ela acabou sendo vítima de feminicídio, pois o namorado não aceitava o fim do relacionamento. 

Por meio da mobilização da comunidade do Jardim São Marcos, o coletivo Movimento das Minas surgiu para realizar um trabalho de apoio às mulheres vítimas de violência, divulgando todos os meios legais e políticas públicas que protegem suas vidas. 

Agora já posso dizer que o ano da pandemia de Covid-19 foi um ano de muitas surpresas ruins, perdas, informação e desinformação. Mas ele também trouxe novas vivências e possibilidades. Ficamos conectados e percebemos como o acesso à internet não é tão democrático assim, afinal, muitos lugares ainda não possuem saneamento básico, rede de esgoto e, muito menos, uma rede de internet que permita essa conexão. 

O grupo deixará saudades, mas também muitos ensinamentos. Foi bom demais!

Tema: Regionalidade Participantes: 64 

Municípios: 18 

Instituições públicas e privadas: 37 

Encontros virtuais entre agosto e novembro de 2020: 10 

Principal resultado: apresentação durante a transmissão ao vivo.

DOWNLOADS

os dias eram assim

DOWNLOAD