Ontém eu morri, mas hoje…

Autora: Karolline Vicente da Silva

Difícil pensar no ano que passou e não sentir um calafrio. Difícil refletir sobre os meses que pareceram todos iguais, com a diferença das estações – dias um pouco nublados, outros mais ensolarados, quando não chuvosos. Mas, e quando a morada não tem espaço suficiente para ver ou sentir o sol? Como terá sido o isolamento até do calor da nossa estrela mais brilhante? Cinza e solitário. Até fazer apagar a própria luz interna. 

Março de 2020. Ainda havia um aglomerado nos corredores da faculdade; o metrô às 22h estava lotado com universitários ansiosos para voltar para suas casas; professores preocupados com o rumo dos próximos dias; famílias sem saber com quem deixar seus filhos; pessoas estocando comida e álcool em gel; era o início de uma longa jornada de mais de 365 dias de quarentena. 

A zombaria acontecia de um lado para o outro, andando paralela ao próprio vírus. Naquele mesmo dia, viram-se estudantes em bares, mas bem… Até hoje nós vemos. Não estudantes, mas o perfil que restou deles, a parte que as aulas on-line não sugaram através da tela. A propósito, as reuniões do Zoom também se tornaram outra espécie de sanguessuga. Se por um lado os encontros por videoconferência eram bons e minimamente reconfortantes, depois de tantas repetições e sem nenhuma outra forma de contato, a saturação contaminou todos, tal como o sarampo, ou outro vírus, seja como for… 

Poucos foram os que conseguiram fugir da exaustão emocional do home-office. Além das dores musculares e dos pensamentos acelerados (ou a falta deles), era preciso se adaptar ao novo formato de trabalho: o e-mail migrou para o WhatsApp, os cafés da tarde com a equipe passaram a ser trazidos pelo motoboy do iFood (mas sem contato, o lanche fica na portaria) e a carga horária… A qualquer hora, a qualquer momento. 

A quarentena não somente inseriu o “home-office” no vocabulário do brasileiro, como também ressignificou a palavra “produtividade”. Esta última passou a ser odiada ferrenhamente por muitos, pois, não havendo mais disposição corporal para produzir, a psique foi se sobrecarregando cada vez mais, até atingir seu limite. Os dias de isolamento social se tornaram iguais, repetindo-se como no filme “Antes que eu vá” — ou quem sabe, a melhor narrativa seria “A Covid te dá parabéns” — e as horas se tornaram infinitas. Em uma escala de trabalho, estudos, cuidado com a casa, dentre outras tarefas essenciais, os pensamentos acelerados se tornaram rápidos demais para manter o equilíbrio. Então, deste modo, pessoas foram para os hospitais com suspeita de coronavírus e saíram de lá medicadas com Fluoxetina. 

Nem mesmo uma pandemia fez com que as pessoas quebrassem o tabu a respeito da saúde mental. Foram necessárias muitas lives, encontros virtuais e entrevistas para que a importância dessa temática fosse melhor recebida. E, ainda assim, mesmo que o preconceito não fosse direcionado para o amigo que sofria com ataques de pânico, o mesmo não era válido para si próprio. A empatia tinha fim no próprio umbigo. 

Para quem nunca teve crises de ansiedade, fobia social e depressão, a autoavaliação foi bastante complicada. Pior seria procurar ajuda em meio a uma crise econômica tão forte. “Como pagar a terapia se não há emprego?”. Não paga. Foi por isso que muitos psicólogos se voluntariaram e se dispuseram a cobrar valores mais acessíveis para atender os pacientes. E não eram somente os jovens e adultos que necessitavam de suporte, os idosos e as crianças também pediam socorro, por afeto, amor, diversão e humanidade. 

Muitas crianças perderam o brilho no olhar, permanecendo vidradas na tela do celular. Sem amiguinhos e com atenção fracionada dos pais, tornou-se entediante desenhar sozinho, e mais chato ainda seria brincar com os dragões do universo intergaláctico. A alfabetização também foi ficando para trás, permanecendo apenas na lembrança ou no choro da criança. 

Também choraram aqueles que já sofriam com transtornos psíquicos antes da pandemia. E aqui havia dois grupos: 1) os que tinham tido alta e retornaram ao médico com temor e 2) os que estavam em tratamento e se viram diante da necessidade de doses mais altas. Ambos estavam relutantes e com medo de tudo e de todos. A diferença maior foi que o grupo 1 sentiu fúria pelas recaídas. 

Para manter o bem-estar psíquico são necessárias três peças fundamentais: alimentação saudável, exercício físico e pessoas. O medicamento é sim necessário em muitos casos, mas, mesmo com o uso dele, os três pontos citados são extremamente importantes para o bom funcionamento de todo ser humano. No entanto, em meio ao isolamento social, sem poder sair de casa para praticar atividades físicas ou encontrar com as pessoas mais queridas, e com toda a frustração dessa realidade (e do home-office) intervindo na alimentação, todo o autocuidado foi por água abaixo (não junto com o skin care). 

Então uma nova luta teve início, um novo tratamento, uma nova caixa de remédios, uma nova “realidade”. Os desafios dos transtornos psicológicos afetam cada indivíduo de uma maneira diferente, mas é provável que todos sintam o medo, o desamparo e a impotência apertando o peito. O choro foi livre dentro de casa. Dessa vez não havia tantos amigos, abraços, rolês ou qualquer meio de conforto ou fuga da dor. Ela precisava ser sentida, e de fato foi. 

Passamos a sentir a dor da recaída, do desencontro, da separação, do desamor, do desrespeito, da desumanização, da perda, do luto, do silêncio. Sentimos de perto a dor do vazio: frio e solitário. Talvez pela primeira vez, muitos precisaram olhar para dentro de si e refletir se já não estavam perdidos antes do vírus. Talvez a falta de ar fosse somente o descompasso das emoções há muito reprimidas. 

Ouviram-se muitos gemidos de tristeza, lágrimas escorreram pelo rosto, a indignação correu pelas veias, e os dias se repetiram como se fossem um DVD arranhado. A incerteza do amanhã e a desistência do hoje fizeram muitos quererem nadar no passado. “Há um ano eu estava no MC Donald’s próximo da faculdade, estava atrasada, pois tinha saído mais tarde do trabalho…”; “Lembra aquele dia em que nós fizemos um teatro para a sala toda? Realmente foi muito divertido, saudades da galera…”; “Se fosse no presencial, seria tão diferente, porque as gravações no estúdio dariam mais ânimo…”; “A netinha começou a andar nos primeiros meses de vida, ela era tão pequena da última vez que a vi…”; “A gente ia casar na primavera, mas não floresceu…”. 

E assim se passou o ano mais angustiante da vida de muitas pessoas. A alma desolada, a casa silenciosa (em algumas, com mais uma cama vazia), os sonhos mais frágeis, o sorriso sem graça, os olhos sem luz e um corpo sem calor. Além de uma pandemia global, navegamos para uma epidemia de diagnósticos de transtornos mentais e para o luto de uma vida. 

Após um ano hesitante, tudo parece exatamente igual – ou pior. Se no início ainda havia comoção e afeto, empatia e potência para ajudar o próximo, hoje as pessoas perguntam: “Onde está o meu próximo?”. Tantas pessoas morrendo, por dentro e por fora, não só pelo vírus ou por suicídio, mas pela falta de esperança e fé de um mundo novo. Será que quando a pandemia acabar estaremos no mesmo lugar? Se houver alguma mudança, será que estaremos inteiros para apreciá- -la? Se não estivermos, onde estaremos? Qual nosso lugar amanhã? No mesmo lugar. As mesmas escolhas, a mesma perspectiva de vida, a mesma casa, e o amanhã torna a se repetir continuamente. 

Difícil pensar no ano que se passou e não sentir um calafrio. Um choro preso na garganta, uma nostalgia de um tempo bom, um sorriso frouxo como se aquele início de ano fosse um romance do passado… E foi. Poderia personificar 2020 como se fosse um antigo amor e lhe daria um abraço bem apertado, como se fosse uma pessoa de verdade. Mas ao olhar seus olhos mórbidos, ao surgir um suspiro na alma, diria que, apesar de toda a tristeza e desolação que estaria por vir, não valeria a pena viver no passado, por mais que o presente não fosse um presente.

*Karolline Vicente da Silva aluna do curso de Jornalismo na FAPCOM.

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ontem eu morri mas hoje

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