Eixos Estruturantes do SUAS

Por: Célio Vanderlei Moraes[1]


O Sistema Único de Assistência Social – SUAS, enquanto concepção, já estava previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (Lei 8742/1993), mas foi só com a Resolução do CNAS 145/2004 (Política Nacional de Assistência Social) é que veio a ganhar forma, sendo fortalecido em 2011 pela lei 12.437/2011 que alterou a LOAS.

Desde então temos o grande desafio de concretizá-lo para que os mínimos sociais alcancem a totalidade da população e, prioritariamente, aqueles que vivem em vulnerabilidade social. Isto exige que se compreenda a concepção de mínimos sociais não como vinculada ao limite da subsistência, mas enquanto condição para o pleno desenvolvimento e convivência social. Esse patamar não tem como ser alcançado apenas pela política de assistência social, isto é, as famílias não estão em vulnerabilidade por falta de assistência social, mas sim por falta de uma moradia, trabalho descente e bem remunerado, saúde integral, educação de qualidade, preservação e sustentabilidade ambiental, incluindo estratégias para lidar com a crise climática que se agiganta, valorização da cultura e da arte em suas diferentes manifestações, lazer de acordo com a diversidade de costumes e preferências, e assim por diante. A assistência social é parte da ação de resgate, mas não a redentora da exclusão.

Em função deste entendimento a própria LOAS já anuncia que a garantia dos mínimos sociais é realizada por “um conjunto integrado de ações da iniciativa pública e da sociedade”. Isto significa, antes de qualquer outro aspecto, que a intersetorialidade das políticas públicas é condição de existência da política de assistência social. Não adianta as equipes da assistência se esforçarem ao extremo se não trouxerem junto as demais políticas, especialmente a saúde (foco na saúde mental), o trabalho, a habitação, e educação, a cultura e assim por diante. É primordial que se dedique esforços e planejamento para promover essa integração. Não se pode apenas lamentar a precariedade e a omissão de muitos com a população mais vulnerável, mas sim produzir as ações que resultem na atuação conjunta, inclusive com a judicialização da demanda, quando for necessário.

Especificamente para a assistência social há o desafio da convivência, em seus múltiplos âmbitos, o que não é pouca coisa. Trata-se de enfrentar qualquer forma de preconceito, violência, autoritarismo ou até a falta de habilidades para lidar com a diversidade. O machismo, chegando até a misoginia talvez seja o mais evidente destes pontos. Não se estará em ambiente de plena convivência enquanto uma mulher seja inferiorizada por ser mulher. Reconstruir as relações neste sentido é um imperativo civilizatório de nosso tempo. Da mesma forma o racismo, além da evidente violação aos direitos da população atacada, ofende a humanidade de todos nós, ao nos hierarquizar pela cor da pele, como seria por qualquer outro marcador de desigualdade. Estes dois aspectos foram aqui destacados por serem barreiras estruturais à convivência social, se constituindo também elementos centrais para a atuação do SUAS.

O enfrentamento a todas as formas de discriminação e toda a violência deve estar abrangida na concepção de convivência social, mas podemos ser ainda mais precisos e identificar todos os autoritarismos e, no limite, o fascismo, são experiências profundas da desigualdade que precisam ser desconstruídas objetiva e subjetivamente. Isto significa desde o desenvolvimento de habilidades de escuta, negociação para tomada de decisões, acessibilidade e inclusão, chegando até mesmo ao planejamento e monitoramento coletivo dos trabalhos desenvolvidos. Além disto, é preciso estabelecer firmemente os limites e responsabilizar os violadores dos direitos. Não se pode contemporizar com quem se nega a respeitar os outros. A diversidade é condição e, neste sentido, nunca pode entrar em negociação. Contrapor com vigor a violência é uma defesa necessária para a pluralidade.

Para que a política de assistência social cumpra essa árdua missão com qualidade é essencial que reconheça seus fazeres e os organize, de forma a possibilitar a otimização de suas limitadas condições de atuação. Neste sentido se pode identificar três eixos estruturantes do SUAS:

Eixo conceitual: Territorialidade, Centralidade na família e Protagonismo

O primeiro conceito a estruturar o SUAS é a densidade com que consideramos seus três conceitos fundamentais. A noção de territorialidade tão bem construída por Milton Santos e apropriada à assistência social por Dirce Koga, nos remete a ler o sentido dos lugares para quem mora no território. A história da comunidade, seu nome, a dinâmica dos deslocamentos, as relações de poder, as identidades, enfim, ouvir com toda a atenção como “funcionam” as coisas e compreender o compromisso que temos com o impacto social em cada local. Precisamos aprimorar a convivência, fortalecer as redes, desenvolver o sentido de pertencimento e, ainda reduzir as vulnerabilidades.

Ainda no âmbito conceitual temos a centralidade na família, ou matricialidade sociofamiliar, que é como está escrito na Política Nacional de Assistência Social. O fortalecimento das relações protetivas sem dogmatizar um padrão de família. Não precisamos sequer adjetivar as famílias. Basta perguntar com quem a pessoa conta e que pode contar com ela para qualquer coisa. Se são ou não parentes, se moram sob um mesmo teto, são questões irrelevantes para o SUAS. O que importa é se cuidam e respeitam uns aos outros. O atendimento tem que visar sempre a família e não se limitar ao indivíduo. Um profissional ou serviço pode estar focado na pessoa, mas precisa garantir que a família como um todo será alcançada pelos demais integrantes da rede de proteção social.

O terceiro conceito estruturante é o protagonismo, indicando que a assistência social não pode fazer para a população, mas COM a população. A partir da compreensão de que são sujeitos de seus direitos, é preciso reconhecer o papel de coadjuvantes a ser exercido pelo SUAS. As apoiamos, as orientamos, provemos os mínimos sociais, mas sempre fomentando a autonomia em cada passo do processo. Precisamos aprimorar a maneira que os incluímos no planejamento e avaliação das ações, por exemplo. Não é apenas participar de momentos solenes, como as conferências. É no cotidiano da unidade que se verificará se estamos de fato fazendo com eles.   

Eixo ético-político: foco nas potencialidades

Um segundo eixo a estruturar o SUAS é o foco nas potencialidades das pessoas, das famílias e dos territórios. Isto não significa negligenciar as vulnerabilidades, mas organizar nossos fazeres a partir da identificação e fortalecimento de quaisquer características positivas para, a partir disto, apoiar o enfrentamento da violação aos seus direitos. O compromisso do SUAS não é superar as violações, até porque estas ultrapassam em muito a capacidade de uma política pública em específico, mas acompanhar e apoiar as conquistas, articulando com as demais políticas, orientando e subsidiando as ações. Trata-se de um eixo ético-político, na medida em que o SUAS assume a aliança com os mais vulneráveis, reconhecendo sua capacidade e se posicionando ao seu lado no enfrentamento à exclusão.

Sempre importante retomar a ideia de que atuamos com vulnerabilidades, no sentido de que precisamos ter clareza das prioridades para atuar. É fundamental inclusive, que se faça busca-ativa para encontrar os excluídos que são invisibilizados socialmente. Assistência social não pode ficar refém da demanda espontânea, até porque esta pode ser enganosa. Nossa capacidade de atuação, que é bastante limitada, precisa concentrar suas energias naqueles que mais precisam e que, até mesmo por isso, muitas vezes não tem condições de nos procurar. Ao identificar as situações prioritárias, temos o compromisso de iniciar fortalecendo suas potencialidades para que possam vir conosco no restante do processo para conquistar direitos.

Eixo metodológico: Tipificação dos Serviços Socioassistenciais e o Assessoramento, Garantia e Defesa.

O terceiro eixo diz respeito à metodologia dos fazeres, que é organizada em duas frentes, de acordo com a própria Lei Orgânica da Assistência Social (Lei 8.742/1993). Por um lado, temos o atendimento, que é dividido em dois níveis de proteção social, o básico e o especial e este segundo subdividido em média e alta complexidade. Nesta primeira matriz se vinculam os serviços socioassistenciais, definidos pela Resolução CNAS nº 109/2009 (Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais). Não é razoável que qualquer profissional ou unidade do SUAS desconheça o conjunto dos serviços ali especificados, com seus objetivos, provisões, condições de acesso, impactos esperados e assim por diante.

São os seguintes os serviços tipificados:

I – Serviços de Proteção Social Básica:

a) Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família – PAIF;

b) Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos;

c) Serviço de Proteção Social Básica no domicílio para pessoas com deficiência e idosas.

II – Serviços de Proteção Social Especial de Média Complexidade:

a) Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos – PAEFI;

b) Serviço Especializado em Abordagem Social;

c) Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida – LA, e de Prestação de Serviços à Comunidade – PSC;

d) Serviço de Proteção Social Especial para Pessoas com Deficiência, Idosos(as) e suas Famílias;

e) Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua.

III – Serviços de Proteção Social Especial de Alta Complexidade:

a) Serviço de Acolhimento Institucional, com suas múltiplas modalidades;

b) Serviço de Acolhimento em República;

c) Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora;

d) Serviço de Proteção em Situações de Calamidades Públicas e de Emergências.

Resolução CNAS nº 109/2009.

Em torno destes podem ser implementados programas e projetos que contribuam para a qualificação, ampliação e integração destes serviços e dos benefícios socioassistenciais.

Ainda no eixo metodológico encontramos as ações de Assessoramento, Defesa, Garantia dos Direitos (ADGD), caracterizadas pela Resolução CNAS nº 27/2011. Este âmbito de atuação do SUAS e que tem a primazia das organizações da sociedade civil, precisa ser reconhecido e valorizado, na medida em que exerce papel estratégico no fortalecimento das potencialidades da população e dos/as trabalhadores/as da assistência social.

Há, e precisa ser cada vez mais valorizada, uma multiplicidade de formas de atuar neste campo. Não cabe tipificar as ações de ADGD justamente porque é o espaço da criatividade das organizações para contemplar a dinâmica e as peculiaridades de cada grupo social em vulnerabilidade. A plasticidade é um elemento chave neste sentido.

O fundamental é que tenhamos presente o sentido destas ações, qual seja, através de programas e projetos sistemáticos, apoiar e fortalecer as iniciativas voltadas à conquista de direitos. A formação e diagnóstico são as mais conhecidas, mas se pode apoiar o processo organizativo, orientar a atuação político-institucional e até mesmo fomentar economicamente as ações.

Assim, considerando estes três eixos que estruturam o SUAS, podemos identificar melhor os desafios para sua implementação qualificada:

  • – Eixo conceitual: Educação permanente para as equipes do SUAS, tanto com capacitações quanto supervisão técnica;

  • – Eixo ético-político: Planejamento das unidades e aprimoramento dos processos de trabalho estabelecendo o foco nas potencialidades;

  • – Eixo metodológico: Revisão político-institucional e normativa, aprimorando a atuação em rede, suprindo as lacunas e valorizando a atuação de cada elo nesta corrente.

O caminho é longo pela frente e há inúmeras barreiras a serem removidos. O ritmo deste processo será determinado pelas condições que tivermos para o trilhar, mas o rumo precisa estar claro para que não desperdicemos nossas parcas energias e possamos alinhar aqueles que tem o mesmo compromisso. É uma política pública relativamente nova e que demanda esforços concentrados para que um dia gere os impactos sociais pretendidos e tão essenciais para quem hoje se encontra em vulnerabilidade.


[1] Psicólogo (CPR 12/765) e mestre em Sociologia Política, integra a equipe de formadores da Paulus Social e faz parte do Coletivo Social Soluções.