Cuidar-se é mais que urgente

Autor: Roger de Lima

Cuidar-se é mais que urgente! Foi a primeira coisa que pensei quando o ano de 2021 iniciou e as expectativas para um retorno presencial ao trabalho já eram uma possibilidade real. 

Lidar com o vírus a todo instante, seja em casa, em home office, dentro do transporte público, no trânsito ou até mesmo andando na rua, evitando contatos, é realmente assustador. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) denominou de “fadiga pandêmica” todo o cansaço que envolve a autocobrança pelos cuidados constantes para evitar o contágio e a transmissão da Covid-19. Contribuem para essa fadiga: ter que cuidar do corpo e da mente, não poder abrir exceções para o contato com familiares e pessoas próximas — para assim também preservá-las —, não permitir que as crianças brinquem ao ar livre, ser obrigado a estudar e ter experiências culturais somente on-line, entre outros elementos. Um exemplo prático desse cansaço foi o estresse gerado pelo excesso de lives, quando todos nós estávamos isolados num espaço ultrarreduzido para nossa própria sobrevivência. 

Contudo, no meio disso, precisamos começar a exercitar esses “respiros” de autocuidado, e um deles envolve justamente o escolher se desconectar. Cuidar-se é mais que urgente! Como as famílias que atendemos realizam esse autocuidado? Elas podem fazê-lo? Elas sabem que podem e que é um direito delas? Como elas saberiam, em meio a tantas informações falsas e notícias tristes se acumulando e circulando ao mesmo tempo nesse espaço infinito das mídias sociais — praticamente sem controle — e que acabam sugando nossa energia, deixando-nos fadigados e abalados psicologicamente? 

A expectativa do retorno presencial estava nos assuntos mais urgentes: informações e cuidados. A nossa vontade era que todas as famílias atendidas pudessem ter, ao menos, as informações precisas e necessárias do que estava realmente acontecendo conosco, aqui em São Paulo e em qualquer outro lugar do Brasil. Voltar aos trabalhos dentro do Serviço de Convivência era uma missão importante, pois havia famílias necessitadas de informação, ao mesmo tempo em que precisavam do pão. E é justamente essa balança que também faz com que qualquer tipo de cuidado seja mais que um direito, mas também um acesso à própria vida. 

Com isso, quando retomamos parte das atividades em janeiro de 2021, a primeira ideia para uma continuidade eficaz do atendimento presencial foi pensarmos coletivamente ações que favorecessem o acesso à informação sobre os temas de saúde, segurança e prevenção para as famílias.

Logo, a cada vez que saía de casa, era impossível não pensar no que estava à minha volta e como isso dialogava diretamente comigo e com o atendimento às famílias. Enxergar as possibilidades concretas da liberdade, da democracia, da justiça e dos direitos acessados no contexto da pandemia tinha de ser um propósito cotidiano do nosso trabalho durante o retorno presencial, pois se trata de uma luta emergente. 

Para que pudéssemos possibilitar esse retorno em conjunto com os protocolos e orientações da OMS e demais instituições à frente do combate à Covid-19, foi necessário alterar e preparar o espaço para atender as crianças e adolescentes. Logo, todos os informes e demarcações foram adaptados para um formato interativo e lúdico, para que eles entendessem facilmente as questões que envolviam prevenção, saúde e segurança dentro dos espaços onde circulariam. Também tivemos o cuidado de ressignificar essas alterações, a fim de que os atendidos pudessem se sentir, mais uma vez, pertencentes ao Serviço de Convivência, já que espaços de acolhimento estão escassos neste momento. 

Criar uma nova rotina baseada nos espaços onde mais pessoas costumavam estar e usar, repensando esse uso para que todos pudessem ir, mesmo que não ao mesmo tempo (a fase vermelha em São Paulo permite atendimento de até 35% do público), foi aprender na prática o que são as restrições que encontramos na rua e em outros espaços onde costumamos transitar, como o supermercado e a escola, por exemplo. 

Aprender na prática e deixar com que os próprios atendidos pudessem recriar os combinados para utilizar as dependências e demais espaços foi uma oportunidade de partilhar com eles a autonomia diante de um assunto sério, que muito se fala e se vê nas mídias, mas que poucos compreendem ou realizam na prática, que é cuidar de si mesmo através de hábitos e comportamentos preventivos e, através disso, cuidar dos amigos, familiares e demais pessoas. 

Todos contribuíram para que o planejamento estivesse alinhado às orientações de saúde, do direito alimentar e de prevenção e, com muito cuidado, ele foi tecido junto aos atendidos, que, aos poucos, trouxeram ideias diversas e muito coerentes em relação ao assunto. Cuidar do espaço que lhes pertence passou a ser também um ato de responsabilidade coletiva. Eles gostam e são detentores desse protagonismo e foi isso que me motivou a acreditar mais ainda na oferta do serviço dentro das comunidades e, principalmente, na promoção de direitos. Eles sabiam o que estavam falando e fazendo e, quando não, a dúvida dava a direção para os caminhos mais pertinentes. 

A nossa casa mudou, a rua mudou, nossos costumes mudaram, os espaços mudaram, nossas relações tiveram de acontecer de maneiras adaptadas e uma coisa também mudou: o modo como cuidamos de nossa parte emocional e psicológica. 

Como falei no início, com a distância das pessoas e da vida que levávamos, normalizamos a ideia de suprir essas faltas e necessidades por meio da internet, fazendo com que as redes sociais se tornassem grandes “geradores de alívio”. E esse ponto também precisa ser olhado com urgência. Em rodas de conversa, as crianças e adolescentes já falam sobre isso. Nos atendimentos, eles questionam sobre padrão, gênero, raça, saúde emocional, desigualdades, influenciadores, afetividades e vários outros temas sociais que ainda não são vistos como deveriam e que, infelizmente, são colocados, de forma precipitada e injusta, na “conta da pandemia”. 

É um dever de todos nós assegurarmos o bem-estar dessas famílias, escutar e dar a voz necessária para essas crianças e jovens e fazer com que as rodas de conversa ecoem por espaços e lugares merecidos. Que esse eco seja espalhado para onde for preciso, pois não se trata apenas de direito, mas sim de cuidados fundamentais para com essas pessoas. E cuidar-se é mais que urgente!

*Roger de Lima atua como Orientador Social no Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos “CCA PAULUS”, mantido pela PAULUS na Freguesia do Ó em São Paulo/SP.

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