Convivência à distância – As adaptações do atendimento na Assistência Social durante o distanciamento

Por redação

A atual pandemia manifestou o indescritível. A maior parte dos adjetivos é falha ou simplória para descrever a dinâmica social que vivemos desde o fim do primeiro trimestre de 2020. Se as redes sociais vinham progressivamente redimensionando a forma como nos relacionamos, as medidas de distanciamento social, necessárias para o enfrentamento da Covid-19, alteraram de forma definitiva nossa forma de conviver. 

A Assistência Social, como diversas outras políticas essenciais, não passa ilesa por esse período. Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos, Acolhimentos Institucionais – SCFV, Centros de Referência e diversos outros aparelhos de atendimento à população precisaram se adaptar para lidar apropriadamente com a conjuntura atual. 

“Inicialmente eu não achava que o vírus iria atingir a gente com tanta intensidade, apesar de acompanhar as notícias sobre outros países e sobre a facilidade do contágio do vírus. Não imaginei que chegaria aqui com tanta facilidade e tão rápido”, relata Aylanne, educadora social em um Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos em Recife/PE. Ela prossegue refletindo sobre as impressões mais imediatas acerca do distanciamento social: “No dia a dia, no convívio semanal que a gente tem com as crianças, adolescentes e familiares, muita coisa já passa despercebida. Ao mesmo tempo, tanta coisa é observada que não caberia em um relatório diário. É só esse contato cara a cara que pode trazer essas observações. Pensei logo que o trabalho ficaria bem comprometido por essa ausência do convívio pessoal”, diz Aylanne. 

Anne Carolina Silva da Costa, orientadora social do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos Formando Cidadãos, na Vila Mariana, em São Paulo/SP, fala sobre as percepções acerca do processo de adaptação: “Primeiro foi a tentativa de se adaptar a um novo modelo. Quando a gente entrou nesse período tínhamos muito medo, muita dúvida e angústia. A gente tinha que ‘achar o ponto’, porque tudo era desconhecido. Alguns dias depois passamos a estabelecer essa conexão on-line com as famílias, até porque a gente não tinha noção na época se iríamos ficar 15 dias ou mais tempo. No começo a gente foi pelo tato, pela intuição muitas vezes”, relata Anne Carolina. 

Desde o primeiro momento, Aylanne se lembra das reações dos atendidos diante das medidas de distanciamento. “Eu pude perceber que as famílias, assim como alguns colegas de função, não tinham ideia do tamanho do problema. E também boa parte não compreendia a gravidade. No começo a gente recebia muitas reclamações, principalmente de crianças e idosos, que têm uma energia de convivência, de querer, de gostar, de tocar e de sentir o momento. Grande parte reclamava e sentia muito essa ausência logo no começo. Outra parte achava que tudo era exagero, que duraria poucos dias”. 

Roger, orientador social do Centro de Atendimento à Criança e ao Adolescente PAULUS, na Freguesia do Ó, zona norte do município de São Paulo, observa também que o desencontro de informações no começo do distanciamento social teve impactos na forma como as famílias encararam a situação: “Tudo faz sentido quando a gente compara como nossos atendidos e suas famílias são orientados e recebem informações e como a gente recebe as informações; isso afeta o SCFV quando você discute com seu atendido e a família que é importante ficar em casa e lá no início a orientação era diferente. Então senti que essa falha na comunicação das esferas governamentais começou a prejudicar nosso serviço, já que muita gente não se cuidava no início. Como não se tinha muita informação definida, a gente entrou em um limbo de estar totalmente apropriado para falar disso além dos cuidados básicos. Sempre assegurar às famílias que o certo era ficar em casa e esperar outras recomendações. No início foi algo muito incerto, no qual as pessoas não acreditavam”. 

Ele também sinaliza alguns motivos pelos quais alguns não se isolaram a princípio: “Em parte por essa questão estrutural, pois infelizmente a gente vive em um país no qual muita gente vive de subempregos. Para as famílias e muitos atendidos colocar o pão na mesa vem antes da própria saúde. Mesmo em um cenário desses tem muita gente que precisa se manter trabalhando. Eles não têm outro caminho a não ser trabalhar. Muitas famílias foram prejudicadas e perderam o emprego, mas muitas famílias encontraram formas alternativas de gerar dinheiro para poder pagar as contas. Isso requer se arriscar na rua; aconteceu muito no começo e está acontecendo até agora”. 

David Wilson Palácio, que trabalha em um centro de acolhida para pessoas em situação de rua, na zona leste de São Paulo, lidou com questões de outra ordem, já que a dinâmica de seu serviço conta também com a permanência dos usuários: “No começo foi muito difícil instituir uma política de distanciamento social, pois havia divergências entre as esferas municipal, estadual e federal. As saídas permaneceram, mas a gente gerou um procedimento de justificação de saídas, mas isso foi só no começo da pandemia quando a ordem era ficar 100% em casa. Os atendimentos da assistente social e da psicóloga focavam em questões mais urgentes, grupos reduzidos, mudou a quantidade de assembleias”. Ele se atenta também às particularidades do acompanhamento da população em uma situação de rua mais agravada pela vulnerabilidade social: “Uma questão no começo era sobre atender a população que está na rua. Começamos uma triagem maior, um acompanhamento em relação à pernoite, mas não deixamos de abrir vagas conforme elas surgiram. Tudo para resguardar tanto o quadro de funcionários quanto prestar um bom atendimento à população. Nada foi paralisado, mas continuamos as atividades de forma reorganizada”. “A dificuldade maior é: somos um centro de acolhida, então somos a casa de uma pessoa”, complementa, sublinhando alguns dos desafios enfrentados: “Como manter as pessoas aqui sem ferir o seu direito de ir e vir? A população em situação de rua tem uma relação com a rua, então, como mudar essa relação?”. 

Geisa Gomes, que atua no Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos de Olho no Futuro em Osasco/SP, comenta sobre algumas interações e percepções: “Logo no início do isolamento eu e o supervisor do SCFV fomos realizar a entrega de cestas básicas para as famílias. Foram dois dias de trabalho e nesse contato com as famílias pude sentir coisas diversas: pessoas esperançosas que terminasse logo a crise, outras que não acreditavam muito na seriedade do vírus e outras que já estavam sentindo os danos desse processo”. 

Uma estratégia adotada por diversos SCFV foi a de elaborar atividades on-line para manter o contato com as famílias e o exercício da convivência: “Depois do trabalho estruturado e do início das atividades remotas, a percepção é de saudade, de esperança, de cuidado coletivo. Agora em agosto, o que consigo sentir além desse sentimento é um desejo de cuidado e de se manter esperançoso, mas também há um sentimento de cansaço”, diz Geisa. 

Aylanne fala de algumas dificuldades do processo de conviver à distância: “Um problema dessa dinâmica, da convivência virtual, é ser pouco inclusiva. Alguns dos participantes não têm os recursos, ou seja, as vulnerabilidades gritam quando a gente coloca como condição da garantia de um serviço público esses requisitos”. 

Reconhecendo essas dificuldades, Anne pontua a persistência e as expectativas ao se atuar dessa forma: “Quando começamos, pensávamos que se duas crianças respondessem, pelo menos, já teríamos algum contato. Nós pensamos em convivência mais por qualidade do que por quantidade. Uma família amparada por nós e estamos com o trabalho feito. Uma ou trinta. Agora, diante dos resultados, a gente está pensando em inovação, ampliação, fazer coisas diferentes”. Já Roger aponta alguns êxitos dessa atuação: “A estratégia foi trazer propostas de atividades lúdicas, que mexem com a mente, com o autocuidado, uma coisa leve, mas com algum sentido de preservação e pertencimento à família. Isso foi o que bolamos para manter a ideia de vínculo familiar”, afirma. 

David sinaliza que, apesar dos receios iniciais, bons resultados foram obtidos ao longo dos meses. “Um sucesso fundamental e inesperado foi que, à medida que a pandemia ia ficando mais crítica, a população começou a entender a necessidade de ficar em casa, o que deu um apoio ao nosso trabalho. Outro sucesso inesperado foi o nível baixíssimo de conflitos com o regulamento e de conflitos internos, e eles eram de se esperar em uma situação extrema como essa. Além disso, muita gente se desenvolveu no trabalho de oficinas, fazendo máscaras e doando para outros serviços, por exemplo. Nesse momento de crise as pessoas escolheram uma terapia ocupacional que é o artesanato. Durante nossos grupos, nossas conversas, a gente sempre frisava que a ocupação manual poderia ser uma alternativa para a angústia que se sentia na quarentena”, relata David. 

Por fim, Roger conclui, observando que algumas das estratégias adquiridas durante este momento podem ser mantidas no futuro: “Quando acontecer um retorno presencial é interessante não abandonarmos alguns destes elementos; aprender a trabalhar de forma presencial utilizando também essas tecnologias, e prosperar nesse sentido de fazer essa coisa dual: estar presente fisicamente e virtualmente”.

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