Conectividade como direito – Tecnologia a serviço do SUAS

Autor: Carlos Eduardo Souza Aguiar

“O que inquieta, de fato, não é que o mundo se transforme num completo domínio da técnica. Muito mais preocupante é que o homem não está preparado para essa radical mudança do mundo. Muito mais preocupante é que ainda não somos capazes de compreender adequadamente, por meio do pensamento meditativo, aquilo que está emergindo em nossa época.” (Heidegger) 

O ato de acolher é considerado na Política de Assistência Social de Proteção Básica como um dos aspectos essenciais para a efetivação dos direitos dos usuários do Sistema Único da Assistência Social – SUAS. No SCFV, a acolhida tem de ser um movimento contínuo, que aconteça não apenas no momento da chegada dos usuários ao espaço em que é executado o serviço, mas em cada atividade e vivência desenvolvida com eles. 

A pandemia de Covid-19 que assola o Brasil e o mundo há mais de um ano acelera um processo em curso nas últimas décadas, que é o da digitalização da sociedade. Às vésperas do colapso pandêmico, todos os setores da vida social – da economia aos relacionamentos afetivos – já vinham sofrendo um impacto massivo e irreversível devido à emergência das tecnologias digitais e em rede. No entanto, as medidas de isolamento social forçaram um deslocamento ainda mais forte para o ambiente das redes, em razão da necessidade de manter a circulação e as trocas em um nível compatível com a própria existência da sociedade. Os milhares de estudantes e professores ao redor do globo que, de uma hora para outra, tiveram de adaptar suas metodologias de ensino e aprendizagem para o contexto das mediações tecnológicas são testemunhas dessas mudanças drásticas. 

Não existe vida social sem circulação de pessoas, de ideias, de solidariedade, de mercadorias. A sociedade funciona à medida que as trocas entre seus diferentes atores acontecem, não só trocas econômicas, mas de conhecimento, de informações e, por que não, de afetos e acolhimento. Logo, os imperativos da pandemia obrigaram diferentes atores, entusiastas ou não das mediações tecnológicas, a aprofundarem sua conectividade no ambiente das redes, situação que desvelou com clareza uma das mais contundentes desigualdades do mundo contemporâneo: a desigualdade digital. 

Não seria diferente com as atividades ligadas à Assistência Social. Diferentes serviços tiveram de rever protocolos e procedimentos e a atuação remota — que sempre foi alvo de forte resistência devido ao imperativo do acolhimento e da escuta atrelados à presencialidade — passou a ser, em muitos casos, o único recurso para manutenção dos atendimentos, na maioria dos casos realizada de forma improvisada, por ferramentas massificadas, como o WhatsApp. 

A tecnologia se insere de forma contundente no âmbito da Assistência Social e alguns questionamentos emergem como fundamentais para profissionais e pesquisadores da área, como o modo de encarar essas tecnologias — se enquanto meros instrumentos ou como verdadeiros ambientes que os profissionais devem ocupar — e, sobretudo, o questionamento acerca da necessidade de garantir o direito de conectividade a toda população. 

O primeiro passo para uma meditação sobre a técnica é abandonar a perspectiva instrumental e encarar as tecnologias como parte integrante da condição humana, elementos estruturantes do mundo que habitamos. Abandonar essa perspectiva nos permite sair de uma cilada moralista que ora encara essas tecnologias como boas em si, ora como ruins em si, o que inevitavelmente contamina o debate sobre a relação entre a Assistência Social e o mundo da técnica. Boa parte da discussão gira em torno desse dilema porque polariza as opiniões entre aqueles que entendem a tecnologia como ferramenta que traz o progresso para a atividade e aqueles que entendem que o excesso de mediação tecnológica, como os atendimentos remotos, traz prejuízos substantivos para a atividade, por supostamente corromper um de seus princípios fundamentais, que é o contato presencial. Igualmente problemática é a tese da suposta neutralidade das tecnologias, centrada na defesa de que elas não seriam boas ou ruins em si, mas qualificadas segundo o uso que é feito delas. Ou seja, as tecnologias no âmbito da Assistência Social poderiam até ser algo positivo se usadas com propósitos nobres. 

O problemático em todas essas posições é que elas partem do mesmo pressuposto de que as tecnologias são meros instrumentos, que ora corrompem, ora potencializam o trabalho da assistência social, ou mesmo as consideram como instrumentos neutros cujo papel seria decidido por seus diferentes usuários. Martin Heidegger, eminente pensador da técnica, nos alerta que a concepção instrumental, apesar de correta, não revela a verdade sobre a técnica. Eis a urgência de se questionar sobre a técnica, pois, ao contrário, estaríamos sempre limitados e sem liberdade diante dela, presos na afirmação ou negação apaixonada ou entregues à falácia da neutralidade. No limite, as tecnologias não são apenas meros instrumentos, mas determinam a forma como habitamos o mundo e nos relacionamos com os outros seres humanos. 

Mais do que um simples conjunto de objetos e práticas, a técnica deve ser pensada como um fator relevante na nossa relação com a realidade, isto é, como aquilo que interfere e tem precedência nas diferentes variações possíveis do modo de aparecimento, ou de revelação, da realidade. Logo, a nossa condição de habitação no mundo contemporâneo é marcada pelo advento das tecnologias digitais e em rede. Tal condição deve ser refletida seriamente por toda atividade profissional, inclusive aquelas ligadas aos SUAS. 

A informatização e as novas tecnologias são um risco e uma oportunidade para o serviço social. Um risco, porque podem contribuir para romper a relação entre profissionais e usuários, comprometendo a criação de vínculos e o exercício da escuta. Uma oportunidade, porque podem, ao contrário, contribuir para uma maior autonomia dos cidadãos e impulsionar uma nova reflexão sobre os ofícios e as funções, ajudando na estruturação de um ambiente profissional — possivelmente ampliado — e promovendo a formação, o intercâmbio de práticas, a comunicação para além dos quadros estritamente institucionais. 

Historicamente vista sob a ótica da instrumentalidade, na esteira da informatização de processos a partir dos anos 1990, a condição digital da existência contemporânea, com a pandemia e o imperativo do distanciamento social, se desvela de outro modo para os profissionais e gestores. A continuidade de vários serviços foi parcialmente possível graças às tecnologias, não por existirem arquiteturas digitais planejadas para essa emergência, mas porque boa parte da sociedade brasileira já habita esse novo ambiente, o que permitiu uma adaptação emergencial. 

No entanto, essa situação desvelou um outro aspecto, reflexo da desigualdade econômica, que é a desigualdade digital. Estudantes do Brasil inteiro, para dar o exemplo mais marcante, sem acesso às redes e computadores, estiveram excluídos do ensino remoto emergencial durante o período de restrição na pandemia. Exclusão tecnológica que vai aprofundar as desigualdades sociais. De fato, uma parcela considerável da população, justamente a mais fragilizada e que demanda os serviços do SUAS, está excluída do mundo digital. Além dessa questão educacional, tarefas simples, como solicitar o auxílio emergencial via aplicativo da Caixa, representaram um obstáculo enorme para muitas pessoas que não tinham acesso às redes. O demandante precisaria de um celular, de um computador ou da ajuda de um terceiro para pedir o benefício. O resultado foi a formação de filas gigantescas nas agências da Caixa ou mesmo nos Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) para algum tipo de auxílio. Lamentavelmente, essa barreira digital ocasionou o não cadastramento de pessoas que precisavam muito, como aqueles em situação de rua que, muitas vezes, nem no CadÚnico estavam. 

A invisibilidade social é, nesses casos, potencializa – da pela exclusão digital. Outro exemplo marcante foi o programa de gratuidade nos restaurantes Bom Prato do governo estadual. Essa gratuidade era garantida via cadastramento on-line e apresentação de um cartão com QR Code pelos beneficiários, o que, evidentemente, representava um grande obstáculo para efetivação desse direito. Sem mencionar todos os serviços prestados no âmbito do SUAS que puderam continuar de forma remota pelas mediações tecnológicas, mas dos quais ficaram de fora aqueles que não tinham recursos digitais, permanecendo expostos e desassistidos. 

Não vivemos tempos normais. O que a pandemia desvelou de modo claro é que vivemos definitivamente no mundo da técnica e das redes, sendo este um caminho sem volta. Nesta situação extrema, foram as tecnologias que permitiram a continuidade da vida social. Logo, a garantia da conectividade constitui direito básico de cidadania no mundo contemporâneo e a não concretização desse direito agrava as desigualdades e potencializa as invisibilidades sociais. A clareza de que a conectividade é um direito básico só é atingida, no nosso entender, quando se abandona a perspectiva instrumental. 

A urgência do debate se intensifica quando deixamos de enxergar as tecnologias como simples ferramentas, que podemos usar ou não, que prejudicam ou beneficiam, e passamos a enxergá-las como constitutivas do ambiente contemporâneo que habitamos, entendendo que ao se negar o acesso a elas, nega-se também a cidadania. Desvela-se, assim, a necessidade e a urgência de um investimento de todos os atores do serviço social em tecnologias de comunicação e informação. Sobretudo, desvela-se a necessidade de compreender a conectividade como um direito a ser garantido à população e cuja efetivação melhora as condições de vida das pessoas vulneráveis, pois resgata a capacidade de ação e permite a participação plena da vida em sociedade. Em suma: o caminho para efetivação do direito à plena convivência passa pela democratização das tecnologias.

¹ Doutor em Sociologia pela Université Sorbonne Paris Cité, mestre em Ciências da Comunicação pela USP, especialista em Ciências da Religião pela PUC-SP e graduado em Comunicação Social, Filosofia e Ciências Sociais pela USP. É professor dos cursos de Comunicação Social e Filosofia e coordenador do Núcleo de Pesquisa e Extensão da Faculdade PAULUS de Tecnologia e Comunicação (Fapcom). ² HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2006.

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