As margens centrais da cidade

Autor: Alberto Nascimento

O distanciamento social — necessidade imperativa para conter o ritmo de transmissão e o avanço da atual pandemia — traz consigo uma dimensão de novas demandas e necessidades. Em uma sociedade extremamente regida por relações econômicas e financeiras, é impraticável solicitar à população que “fique em casa” quando faltam iniciativas governamentais que permitam a manutenção do poder de compra. Como apenas uma pequena porcentagem dos setores de serviços permite o trabalho remoto, uma quantidade significativa da população é obrigada a se deslocar para seu trabalho a fim de garantir não apenas a própria subsistência, mas também viabilizar a manutenção da roda do capital. 

Todavia, existe dentro dessa dinâmica um segundo tipo de “distanciamento social”: no caso, o de uma parcela da população que existe às margens do status quo, não apenas fisicamente deslocadas, mas também na dimensão existencial. Vivendo ignorada pelo ritmo da cidade, a população em situação de rua se aglomera marginalizada na periferia metafórica, que muitas vezes se manifesta na própria região central das grandes metrópoles. 

Padre Júlio Lancelotti, pároco da paróquia São Miguel Arcanjo, localizada no bairro da Mooca, em São Paulo (SP), tem atuação constante na garantia e defesa de direitos da população em situação de rua. Para ele, a pandemia trouxe uma mudança muito grande no ritmo de vida dessa parcela da população. “No início, o impacto foi muito grande, porque a população em situação de rua está acostumada a lidar com inimigos visíveis e, de repente, apareceu um inimigo invisível de todos, não só deles. De início, eles ficaram impactados ao ouvir o apelo: ‘Fique em casa’, e eles sem uma casa para ficar; ‘lave as mãos’, e eles sem acesso à água potável; ‘use álcool em gel’, e o álcool que eles conhecem é o que acende o fogo ou o que está na bebida. Então, eles passaram a ouvir muitas coisas que para eles eram estranhas. Outro fator que chamou muito a atenção deles é que antes, se eles estivessem mascarados, eram repudiados ou repreendidos; mas, de repente, eles passaram a ser repreendidos se estivessem sem máscaras. Outro fato curioso é que em todos os lugares onde eles não podiam entrar, com a pandemia, ninguém pôde entrar, como em shoppings e restaurantes”, relata o religioso. 

No dia 12 de março, teve início a vacinação contra a Covid-19 para pessoas em situação de rua. No fim do mês, todos acima de 18 anos que fazem parte dessa população vulnerável tiveram acesso à vacinação. Todavia, Pe. Lancellotti observa que esse processo encontra seus empecilhos entre a própria população. “A rua repete aquilo que existe na sociedade; na rua também há negacionistas. Existem agora os que querem ser vacinados e os que não querem. A rua não é um mundo à parte e todo o pensamento que existe na sociedade está entre os moradores em situação de rua também”, conta Pe. Júlio. 

O último censo da população de rua, realizado em 2019, indica aproximadamente 25 mil pessoas vivendo em condição de vulnerabilidade na capital de São Paulo. Entretanto, o Movimento Estadual da População em Situação de Rua estima que este número já esteja defasado, e a quantidade real aproxime-se dos 50 mil. “O número de pessoas na rua aumentou, então as dificuldades de sempre cresceram. Percebemos o aumento de mulheres com crianças, grupos familiares. Vemos que o centro da cidade está coberto de barracas. As pessoas estão realmente morando na rua, a cidade está cheia de acampamentos”, afirma Lancellotti.

Apesar da situação, Pe. Júlio não deixou de prestar atendimento aos moradores em situação de rua. Ele relata que foram adotados procedimentos de distanciamento, uso de máscara e álcool em gel, para que os atendimentos fossem mantidos. “Além disso, é perceptível o aumento do número de pessoas buscando refeição”, relata o religioso. 

Mesmo com a possibilidade de que a adaptação aos protocolos sanitários gerasse impeditivos na atuação, Pe. Júlio conta não ter sido essa sua experiência. “Se o contato é continuado, não episódico, eles nos conhecem. No contato continuado são os mesmos olhos. Há a diferença do uso da máscara, mas a pessoa continua sendo a mesma. A máscara transformou um pouco a relação, pois geralmente nós tínhamos uma comunicação mais corporal, e a máscara está nos levando a ter uma comunicação voltada aos olhares”, explica.

Sobre novas estratégias adotadas pelo poder público, Lancellotti fala sobre a limitada quantidade de vagas disponíveis na rede hoteleira. “Uma novidade que apareceu — e deveria ter sido muito maior, mas foi muito tímida — foi a utilização da rede hoteleira. A disponibilidade de vagas em hotéis de São Paulo foi muito baixa, diferente de outras grandes cidades do mundo. Em São Paulo, a prefeitura conseguiu no máximo 200 vagas, só para idosos; não conseguiu para mulheres com crianças”, conta Pe. Júlio. 

O crescimento significativo da população em situação de rua se dá desde antes da pandemia, que apenas agravou esse ritmo. A necessidade constante de novas estratégias que transcendam o assistencialismo se faz cada vez mais gritante. Mas, há também uma necessidade de reestabelecimento dos vínculos dessa população, que pode ser gerado progressivamente por cada pessoa. “Algo que podemos fazer sempre, e todos podem fazer, é não discriminar, não ter medo. Comunique, fale com as pessoas; isso já representa uma mudança de atitude”, conclui Pe. Lancellotti.

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