A importância da capacitação continuada para conselheiros tutelares: Fortalecendo a proteção dos direitos de crianças e adolescentes

Por: Rosimeire Ap Mantovan[1] e Tatiana de Fátima Domigues[2]


Contexto do Conselho Tutelar

Muito se tem discutido a atuação de Conselhos Tutelares no Brasil. Desde a sua criação, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, o órgão tem enfrentado desafios que vão desde a estrutura para o trabalho até a qualidade das intervenções realizadas, considerando um cenário político de mudanças, cujo agravamento da situação socioeconômica,  potencializa as situações de riscos e vulnerabilidades de crianças e adolescentes.

Criado com a finalidade de zelar pelos direitos de crianças e adolescentes, o órgão vem passando ao longo dos seus 34 anos de existência, por profundas mudanças ideopolítica. No Projeto de Lei do Estatuto da Criança e do Adolescente, o Conselho Tutelar foi concebido de modo diferente daquele que posteriormente seria constituído, por isso permaneceram algumas questões incompatíveis, segundo Souza “a experiência dos conselhos ainda é um cenário em construção. Polêmicas, divergências e conflitos em torno da atribuição de responsabilidades, da distribuição dos poderes e representatividade têm permeado a atuação destes órgãos”. (1998, p.45). O Conselho Tutelar originalmente era um órgão voluntário, com maior proximidade ao Poder Judiciário na sua organização, inclusive com a previsão de um Conselho Tutelar em cada Comarca judiciária, foro regional, ou distrital. Deste modo, nas

[…] discussões do anteprojeto de lei que deu origem ao ECA, a tônica era marcada pela avaliação da necessidade de um órgão popular distribuidor de justiça social, célere e com mínimo de formalidade, que pudesse solucionar no próprio município casos individuais caracterizados pelo descumprimento aos direitos fundamentais das crianças e adolescentes. Verdadeira instância administrativa, preferencialmente composta por profissionais versados nas questões relativas à infância e juventude, o Conselho Tutelar atuaria nos casos onde a valoração jurídica seria secundária ante a premência do pronto atendimento, capaz de rapidamente concretizar a proteção especial, resumida em medidas de proteção destinadas a crianças e adolescentes. (SILVA, 1994, p. 215)

Marca-se assim, uma origem focada nos anseios do movimento da infância, em se ver representado por meio do Conselho Tutelar, para a defesa de direitos de crianças e adolescentes, fazendo o ECA ser legitimado e aplicado. Observou-se no entanto, que a função conselheira não seria exequível em caráter voluntário, sendo necessária a profissionalização do órgão, sem contudo, perder suas origens políticas.

Anteriormente, a legislação brasileira voltada para crianças e adolescentes estava centrada no Código de Menores (Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979). Esse código tinha uma abordagem punitiva e assistencialista, focada em menores em “situação irregular”, tratava as crianças e adolescentes como objetos de tutela do Estado, em vez de sujeitos de direitos.

A adoção pelo Estado brasileiro da doutrina da proteção integral a crianças e adolescentes, com a criação do ECA, mudou radicalmente o panorama de políticas públicas destinadas a esta parcela da população brasileira.

Esta legislação determinou uma nova responsabilidade aos estados e aos municípios na criação e implementação de políticas públicas que garantissem a efetivação da cidadania e a proteção contra a violação dos direitos da infância e juventude. Inúmeras instituições foram constituídas, como os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, os Conselhos Tutelares, os Fundos de Direitos da Criança e do Adolescente e a Ação Civil Pública.

O ECA instituiu os Conselhos Tutelares como órgãos permanentes e autônomos, não jurisdicionais, encarregados de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, determinando que cada município tenha pelo menos um Conselho Tutelar, composto por cinco membros escolhidos pela comunidade local por meio de eleição.

Os primeiros Conselhos Tutelares começaram a ser instalados no início dos anos 1990. A implementação variou conforme o compromisso e a organização de cada município, se tornando um dos principais mecanismos de proteção de direitos, atuando na fiscalização, atendimento de denúncias e na articulação com outros órgãos e serviços de proteção à infância e adolescência.

Atribuições e competências

De acordo com  o Art. 131 do ECA   “O Conselho Tutelar é um órgão permanente e autônomo, não-jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta Lei”. Compreendido como um órgão inovador na sociedade brasileira, além de zelar pelo cumprimento dos direitos, tem o potencial de contribuir para mudanças profundas no atendimento à infância e adolescência.

Trata-se de um órgão público municipal, criado por Lei Municipal e efetivamente implantado passa a integrar de forma definitiva o quadro das instituições municipais. Desenvolve uma ação contínua e ininterrupta. Sua ação não deve sofrer interrupções, sob qualquer pretexto. Uma vez criado e implantado, não desaparece; apenas renovam-se os seus membros.

Exerce suas funções com independência, inclusive para denunciar e corrigir distorções existentes na própria administração pública relativa ao atendimento às crianças e adolescentes. Suas decisões só podem ser revistas pelo Juiz da Infância e da Juventude, a partir de requerimento daquele que se sentir prejudicado.

Ao longo da existência do ECA e por força constitucional, outros instrumentos normativos foram sendo criados e todo o ordenamento jurídico construído para atendimento dos direitos da criança e do adolescente passa por um processo de transformação paradigmática na perspectiva da proteção integral, como resultado de um processo historicamente construído, marcado por transformações ocorridas no Estado, na sociedade e na família.  Políticas Públicas foram criadas ou modificadas, alterando também o contexto da ação conselheira, exigindo uma compreensão aprofundada das atribuições, assim como a habilidade de transitar pelos diversos serviços e construir articulações .

Exige-se portanto do conselheiro ou conselheira em exercício, a capacidade de interpretar a realidade, analisar as demandas e ser assertivo em suas intervenções, o que se constituí em verdadeiro desafio no momento presente.

Desafios na Atuação dos Conselheiros Tutelares:

Apesar dos avanços, os Conselhos Tutelares enfrentam desafios significativos, como falta de estrutura, recursos insuficientes e ausência ou frágil capacitação. Além disso, a necessidade de um sistema de proteção mais integrado e a resistência de alguns setores da sociedade ao papel fiscalizador dos Conselhos Tutelares, ainda são obstáculos a serem superados.

O eixo “promoção” é composto pelos serviços e organizações (OSC) que os direitos previstos em lei se tornem realidade: saúde, educação, assistência, esporte, lazer, cultura, entre outros;

O eixo “defesa” é responsável pela defesa legal dos direitos de crianças e adolescentes e responsabilização daqueles que não os cumprem: conselho tutelar, polícias, judiciário, ministério público, entre outros;

O eixo controle visa o cumprimento do ECA: conselhos setoriais, conselho de direitos, sociedade civil, entre outros (Conanda, 2006).

Em 2006, o Conselho Nacional dos Direitos de Crianças e Adolescentes (CONANDA) publicou a resolução nº 113 de 19 de abril, que dispõe sobre os parâmetros para a institucionalização e fortalecimento do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGD). Segundo a resolução, o SGD é composto por três eixos: promoção, defesa e controle.

O SGD visa dar operacionalidade à proteção integral preconizada no Estatuto da Criança e do Adolescente, por meio da implementação de ações articuladas, do trabalho intersetorial e do trabalho em rede.

O Conselho Tutelar sendo um órgão que atua no eixo da defesa, para o cumprimento efetivo do seu papel, depende da articulação do SGD, constituindo intersecção em rede que de fato, proteja crianças e adolescentes, o que nem sempre é promissor.

A ausência de um sistema informatizado unificado ou ainda a utilização precária ou parcial do SIPIA[3] não evidenciam às demandas e necessidades dos territórios de atuação. A comunicação em rede, como elemento essencial, quando se torna truncada, gestam espaços onde as demandas e responsabilidades não são pactuadas, gerando pouca ou nula existência de fluxos, entre outros problemas. Soma-se ainda, o distanciamento do Ministério Público, sem acompanhamento e suporte ao órgão são alguns dos desafios enfrentados pelo Conselho Tutelar em âmbito nacional.

A garantia de processo de capacitação continuada ao Conselho Tutelar é uma premissa já apontada pelo CONANDA desde 2001:

A contínua capacitação dos integrantes do Conselho Tutelar também é indispensável, de modo que eles sejam preparados para o exercício de suas relevantes atribuições em sua plenitude, o que obviamente não se restringe ao atendimento de crianças e adolescentes, mas também importa numa atuação preventiva, identificando demandas e fazendo gestões junto ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e Prefeitura Municipal para a criação e/ou ampliação de programas específicos, que darão ao órgão condições de um efetivo funcionamento. (Parâmetros de Funcionamento dos Conselhos Tutelares, 2001)

Mais de 20 anos depois dessa orientação nacional, a capacitação continuada não é uma realidade plenamente efetivada nos municípios brasileiros, sendo comumente restrita apenas ao processo eleitoral no início da gestão de novos membros, o que sem dúvida, prejudica a atuação do órgão no devido cumprimento de suas atribuições.

A Importância da Capacitação

Para utilização plena do potencial transformador do Conselho Tutelar, é imprescindível que o órgão, bem como profissionais da rede e todos os cidadãos conheçam sua organização, atribuição e prerrogativas e assim, oportunize uma atuação mais assertiva e alinhada ao paradigma da proteção integral.

É essencial a capacitação continuada seja reconhecida como instrumento fundamental para o avanço na defesa e promoção de direitos de crianças e adolescentes. Apenas por meio da capacitação que conselheiros e conselheiras podem refletir e analisar suas atribuições e o importante papel que este órgão colegiados ocupa na sociedade.

A capacitação permanente deve contribuir para identificar, intervir e acompanhar casos de violação de direitos, assim como, na habilidade de transitar por todo o Sistema de Garantia de Direitos de forma fluida.

Lidar com territórios de alta vulnerabilidade e risco social e contextos  de grande complexidade exige a reflexão constante de sua prática, o desenvolvimento de novas competências e o aprimoramento da leitura permanente da realidade, permitindo assim, a construção de repertório teórico e normativo de forma crítica e analítica, para além da repetição de leis e conceitos.

Um processo contínuo de capacitação também oportuniza o aprendizado de novas metodologias de intervenção, podendo desenvolver a escuta ativa, a comunicação dialógica e habilidade para trabalhar em equipe e construir concessos.

Observa-se ainda que a capacitação continuada com o Conselho Tutelar demonstra o frágil entendimento que a rede de serviços tem sobre a atuação do órgão, o que dificulta deveras construção de procedimentos e fluxos em rede.  

Considerações Finais

O Conselho Tutelar é um importante mecanismo para a defesa de direitos de crianças e adolescentes que nasce com bases fortalecidas e ancoradas na Doutrina da Proteção Integral. Não se pode desconsiderar, no entanto, os desafios qual o órgão está submetido nos municípios brasileiros desenvolvidos neste texto com destaque para a falta de infraestrutura, ausência ou frágil articulação com o Sistema de Garantia de Direitos  e ainda, falta de compressão das atribuições, seja por parte dos conselheiros e conselheiras, seja por parte da rede de serviços.

A capacitação continuada é uma prerrogativa e oportuniza espaço de construção de um Conselho Tutelar atuante, fortalecido, compromissado com os direitos de crianças e adolescente na perspectiva da proteção integral e na construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Não defendendo a capacitação continuada como uma tábua de salvação, mas como um espaço de ressignificação de práticas que até podem parecer progressistas, mas, carregam nas entrelinhas ranço conservador, moralizador e disciplinador.


[1] Assistente Social e Advogada, especialista em Direito Constitucional, mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de SP, professora de pós-graduação, sócia-fundadora da Tecendo Social Educação e Apoio a Gestão. Email: [email protected]

[2] Assistente Social, mestre e doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de SP, professora de pós-graduação, sócia-fundadora da Tecendo Social Educação e Apoio a Gestão. Email: [email protected]

[3] O Sistema de Informação para a Infância e Adolescência – SIPIA é um sistema nacional de registro e tratamento de informações sobre a garantia e defesa dos direitos fundamentais preconizados no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), voltado para o Conselho Tutelar.


Referências Bibliográficas

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BAPTISTA et all (orgs.). Família de Crianças e Adolescentes Abrigados: quem são, como vivem, o que pensam, o que desejam – São Paulo: Paulus Editora, 2008.

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_____. Lei N° 12. 696 de 25/07/2012. Altera os arts. 132, 134, 135 e 139 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), para dispor sobre os Conselhos Tutelares.

_____. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Resolução CONANDA 113 de 19 de abril de 2006.  Dispõe sobre os parâmetros para a institucionalização e fortalecimento do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. Brasília. 2006. Disponível em http://dh.sdh.gov.br/download/resolucoes-conanda/res-113.pdf. Acesso em 05. jul.2016

_____. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA Resolução 137 in http://www.dh.sdh.gov.br/download/resolucoes-conanda/res-137.pdf. Acessado em 05/06/2016.

_____. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA Resolução nº 113, de 19 de abril de 2006;

_____. Lei N° 8.742, de 7 de dezembro de 1993, LOAS – Lei orgânica da Assistência Social.                         

_____. Lei N° 12.435 de 06/07/2011 que altera a Lei 8.742/93 e dispõe sobre a organização do SUAS – Sistema Único de Assistência Social

__________. LEI Nº 12.594, DE 18 DE JANEIRO DE 2012 – Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase)

_____. Política Nacional de Assistência Social – PNAS/ 2004.

____. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária – 2006.

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SILVA, José Luiz Mônaco da. Estatuto da Criança e do Adolescente: Comentários. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994.

SOUZA, Marli Palma. Crianças e Adolescentes: Absoluta Prioridade? Revista Katalysis, n. 2, Florianópolis, 1998, p. 45.