Proteção Integral e Formação de Educadores(as) Sociais no Acolhimento Institucional: Elementos Interdependentes na Efetivação dos Direitos de Crianças e Adolescentes em situação de risco e vulnerabilidade

Por: Agnaldo Aparecido Geremias [1]


Discutir um assunto tão complexo como o acolhimento institucional sempre será um desafio. Por isso, em face deste pequeno espaço, intencionalmente proposto para a interposição de provocações e reflexões grávidas de significado, pretendo, nas linhas que se seguem, ater-me, ainda que de forma breve, a uma discussão que aborda a relação dialógica entre dois componentes primordiais que regem aspectos singulares da Política dedicada à infância: O Paradigma da Proteção integral e a formação do(a) educador(a) social que atua no acolhimento institucional, particularmente na modalidade abrigo. Espero que os significados aos quais me refiro, possam fazer sentido para aqueles e aquelas que se interessam ou possam vir a se interessar por este tema. Um assunto ao mesmo tempo denso e gratificante, permeado por tristezas, mas catalizador de muitas alegrias, reconhecidamente resultante das mazelas e feiuras da contemporaneidade, todavia, concomitantemente promotor de bonitezas e esperanças.

Do orfanato ao acolhimento: um longo processo de desconstrução e reconstrução.

Graças à mudança paradigmática iniciada normativamente por ocasião da promulgação da nossa Carta Magna de 1988 e implementada a partir do ano de 1990, com a  promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e seus desdobramentos legais, os chamados “orfanatos”, famigeradas instituições que chegaram a abrigar, nos períodos mais sombrios da nossa história, centenas de crianças, abarrotadas em complexos edificados como verdadeiros depósitos de seres humanos, deixaram obrigatoriamente de existir. Obviamente, isso não ocorreu de forma branda, tampouco num passe de mágica. Foi um processo longo de desconstrução e reordenamento, que embora tenha sido, em boa parte, exitoso, continua revelando inúmeros desafios.  

De toda sorte, o fato é que hoje, em grande medida, as estruturas físicas e organizacionais dos acolhimentos institucionais de crianças e adolescentes, pautados essencialmente nas diretrizes estabelecidas pela Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais, revela condições, ao menos materiais, muito mais adequadas, no que tange aos cuidados e a socioeducação de meninos e meninas em situação de abandono, negligência, violência, vulnerabilidade ou risco social. Permitam-me, entretanto, introduzir aqui uma provocação: Trinta e quatro anos depois da promulgação do ECA, onde está esse novo paradigma?

É importante reconhecer que a substituição da Doutrina da Situação Irregular, pela Doutrina da Proteção Integral, revela-se como um marco na história deste país. Uma proposta revolucionária que intenciona transformar o olhar acerca da infância e a adolescência brasileiras. Ocorre, no entanto que, um Paradigma de Proteção Integral, que proteja integralmente (o pleonasmo aqui é intencional) só se efetivará em plenitude, na mesma medida em que seus elementos constitutivos sejam aceitos, apropriados, internalizados e compreendidos pela sociedade. Mais do que isso, faz-se necessário que haja vontade política e, sobretudo, que os responsáveis pela efetivação de aspectos legais capazes de colocá-lo em prática, mobilizem-se rumo a sua realização.  Esse processo passa, essencialmente, pela vontade política, mas também e, em igual medida, por mudanças culturais, pela transmutação de uma legalidade burocraticamente construída, para a existência de um elemento do convívio humano compreendido, muito além do direito legalista, como um componente protetivo natural, prioritário e inalienável de uma nação que almeja ser realmente justa. Assim, é preciso que sua necessidade seja percebida, vivida, estimulada e disseminada sem que sua efetivação demande processos de extrema judicialização.

Eis o desafio, uma vez que o senso comum persiste em continuar tratando temas relacionados ao acolhimento institucional como objeto da caridade, da comiseração, da indulgência. Desnecessário dizer que essa perspectiva se encontra muito aquém do que propõe o desejado paradigma da Proteção Integral, especificamente para o acolhimento institucional, isto é, que ele seja aceito e reconhecido como um direito consagrado das crianças e adolescentes que, de forma fortuita, tiveram seu convívio familiar esgarçado pela violência.

Um novo abrigo

Resultantes desse árduo processo, as exigências legais descrevem nos dias de hoje, especificamente nos moldes do abrigo institucional, a permanência de um limite máximo de vinte crianças e, ou adolescentes acolhidos em cada unidade de acolhimento. Não significa que essa estimativa numérica nunca seja ultrapassada, ao contrário, situações nas quais isso ocorre, costumam ser mais comuns do que se deseja, sobretudo se considerarmos as incertezas que regem o universo das relações sociais e familiares, num confronto diuturno com as mazelas provocadas por uma realidade comumente desigual, violenta e desumana.

A composição das equipes de trabalho também passou por adequações e, atualmente, são constituídas a partir de uma relação numérica mínima de um educador para cada grupo de dez crianças. Essa relação deve mudar obrigatoriamente nas situações em que exista entre os acolhidos algum bebê, crianças e adolescentes com alguma deficiência, seja ela física ou intelectual ou ainda, outra necessidade específica.  Diante desse contexto, é necessário um educador para cada oito acolhidos, quando houver uma criança/adolescente com demandas específicas e, um educador para cada seis acolhidos, quando houver duas ou mais crianças/adolescentes em tais condições.

Em tempo, se de um lado, houve avanços na melhoria das perspectivas materiais, organizacionais e estruturais das instituições de acolhimento, as quais apresentam, a priori, condições mais dignas para acolher as crianças e adolescentes, o mesmo não se pode afirmar que tenha ocorrido com a formação e o preparo dos profissionais responsáveis pelo cotidiano de orientação, educação e cuidados despendidos aos meninos e meninas que se encontram na condição de acolhidos.

O despreparo e a falta de formação permanente, adequada e, sobretudo sistematizada, dos(as) educadores(as) sociais que atuam no acolhimento, refletem-se nas principais dificuldades apresentadas por eles em seu cotidiano laboral, afetando, inevitavelmente, os resultados dos processos socioeducacionais junto às crianças e adolescentes acolhidos. Esses profissionais, que se apresentam como os principais responsáveis pelas ações que inferem e interferem de forma mais próxima na realidade dos acolhidos, são os que mais necessitam de processos de formação permanente, todavia, em verdade e, paradoxalmente, são aqueles aos quais os menores quinhões das oportunidades formativas são concedidos.

Tal descaso, a partir do qual essa formação é frequentemente encarada por aqueles que se responsabilizam pela criação e efetivação das políticas públicas, maximizam a precariedade das ações despendidas às crianças e adolescentes em situação de acolhimento institucional. Diante de uma realidade como essa, nenhuma estrutura física, ou material será capaz de conceder os elementos necessários para a efetivação de processos socioeducativos no interior das instituições de acolhimento, quiçá de promover a desejada transformação social que rege os desejos originais do Paradigma da Proteção Integral.

Caminhos possíveis

Para proteger integralmente crianças ou adolescentes em situação de risco, vítimas de violência e afastadas do convívio familiar, não bastará proporcionar-lhes abrigo, alimentação e demais condições objetivas. Protegê-las de forma integral, obviamente, contemplará tais elementos, posto que objetividades se apresentam como aspectos inerentes e necessários a sobrevivência, entretanto, não deverá se encerrar neles, principalmente se o que se deseja, no trato com esses meninos e meninas é que eles “vivam” e não apenas “sobrevivam”. Para tanto, a ampliação das perspectivas de transformação que pulsam (devem pulsar) no interior das instituições de acolhimento e, consequentemente, no interior das equipes de profissionais do serviço estão potencialmente alocadas em dois principais elementos: o encontro e o convívio. Estes se manifestam inevitavelmente no cotidiano, queiramos nós ou não. O que os potencializará, todavia, será a forma por meio da qual nos valeremos intencionalmente deles. Assim, para que a transformação brote e floresça, mister que se valorize intensamente cada encontro, que cada olhar, cada toque, cada palavra seja percebida como oportunidade única e insubstituível, fazendo do convívio a massa crítica de atuação dos(as) educadores(as) sociais, estratégia metodológica que, ao ser implementada de forma consciente, amplificará seu potencial transformador.

Para que educadores e educadoras sociais que atuam no acolhimento institucional se percebam como detentores conscientes dessa forma de atuar, é preciso que se construam espaços formativos. Tais espaços poderão ser implementados de forma clássica, ou seja, extrínseca ao serviço, por intermédio de profissionais que atuem como supervisores ou formadores. Uma formação mais efetiva, no entanto, deverá ocorrer, principalmente, a partir de espaços criados pelas próprias equipes, como elemento metodológico a ser exercitado no dia a dia, fundamentado essencialmente nas experiências e vivências do cotidiano. Implementar espaços formativos como esses, qualificará a reflexão sobre a prática, contribuindo para construção de perspectivas metodológicas e pedagógicas de atuação, de tal sorte que se privilegie a proatividade e a ação em detrimento da mera reação ante os conflitos cotidianos. Pari passu a esse processo, poder-se-á agregar o estudo coletivo de teorias capazes de apoiar as reflexões acerca dos acontecimentos que ocorrem durante a dinâmica viva, pulsante e incessante do abrigo. A inter-relação dialógica entre essas três dimensões formativas, ao meu juízo, garantirá um olhar ampliado sobre os gargalos da atuação socioeducativa e, consequentemente, ampliará o leque de possibilidades para a superação dos desafios por eles representados. A experiência como ponto de partida; a discussão sobre ela no interior das equipes de trabalho e com formadores capazes de apresentar um olhar ampliado sobre as situações vividas e, por fim, a importante presença da teoria, promovendo uma articulação acerca daquilo que já foi pensado sobre a temática do acolhimento, estimulando a reflexão sobre o que de novo se pode dizer ou criar, a partir da relação dela com a prática empreendida.

Antes de concluir essa breve reflexão, é importante ressaltar que a perspectiva da formação permanente de educadores e educadoras sociais que atuam no acolhimento institucional de crianças e adolescentes não se apresenta como a tábua de salvação na garantia da efetivação do Paradigma da Proteção Integral. Juntos, todavia, Proteção Integral e formação continuada daqueles e daquelas que são responsáveis por realizá-lo, são pilares imbricados e indispensáveis na promoção dos direitos de crianças e adolescentes, sobretudo os que se acham na condição de acolhidos.

O avanço normativo proporcionado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente estabeleceu, inegavelmente um marco transformador, ao substituir os antigos orfanatos por espaços que pretendem ser mais humanizados. A plena realização, desse paradigma, entretanto, depende de uma mudança cultural profunda e de uma mobilização política que incorpore conscientemente esses princípios como valores fundamentais da sociedade brasileira. Apesar das melhorias nas condições físicas e organizacionais das instituições de acolhimento, a formação ainda inadequada e insuficiente dos educadores e educadoras segue sendo um obstáculo significativo, mas não intransponível. Para tanto, cabe reafirmar que os profissionais, que estão na linha de frente do cuidado e da educação das crianças e adolescentes, necessitam de formação contínua e perene, a fim de que possam enfrentar os desafios diários e promover um ambiente transformador. A ausência de formação sólida e permanente compromete a qualidade dos processos socioeducacionais e, por extensão, a eficácia do acolhimento institucional. Nesse sentido, é imperativo que se crie e garanta a manutenção de espaços formativos adequados. Investir na formação desses profissionais, significa fortalecer a base necessária para que o acolhimento institucional seja capaz de assegurar uma proteção integral efetiva para crianças e adolescentes. Poderemos assim, contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e humana, onde não só as crianças e adolescentes, mas também educadores e educadoras tenham oportunidades para desenvolver plenamente seu potencial e viver com alegria, dignidade e esperança.


[1] Pedagogo, Especialista em Políticas Públicas, Mestre em Educação Filosofia e Formação Humana, Doutor em Educação Arte e História da Cultura.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Orientações técnicas: serviços de acolhimento para crianças e adolescentes. Brasília: Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e Conselho Nacional de Assistência Social, 2009.

______. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências.

______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Tipificação nacional dos serviços socioassistenciais. Brasília: MDS, 2009. Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/tipificacao.pdf.

BUBER, Martin. Eu e Tu. 10. ed. São Paulo: Centauro, 1974.

Geremias, A. A. ., & Souza Neto, J. C. de. (2023). Formação do educador social no acolhimento institucional: desafios e perspectivas para uma prática transformadora. Peer Review, 5(7), 298–315. https://doi.org/10.53660/399.prw100.