Bem viver e utopia: uma crítica radical da realidade

Por: Fernanda Andrade Garcia

No atual contexto de nossa sociedade, refletir sobre a noção de Bem Viver é uma tarefa difícil, quase impossível. Diferentemente de noções mais comumente utilizadas, como “viver melhor” ou “viver bem”, o Bem Viver parece estar associado a uma proposta de mudança radical das formas de vida. Em seu livro, O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos, Alberto Acosta (2014, p. 23) define o Bem Viver, ou sumak kawsay (kíchwa), suma qamaña (aymara), e, ainda, nhande- reko (guarani), como “uma oportunidade para construir coletivamente uma nova forma de vida”. Para o autor (2014, p. 70), o Bem Viver é um elemento que compõe a história das lutas populares, principalmente dos grupos indígenas. “São propostas invisibilizadas por muito tempo, que agora convidam a romper radicalmente com conceitos assumidos como indiscutíveis. […] É disso que se trata o Bem Viver”.

Proponho pensarmos a noção de Bem Viver a partir de dois eixos principais: a radicalidade e a imaginação. Aqui, a palavra “radical” tem um sentido diferente daquele que costumamos usar em nosso cotidiano. Nesse contexto, ela está relacionada com uma mudança qualitativa e profunda da sociedade; a radicalidade diria respeito ao entendimento da raiz do problema que buscamos resolver.

Para pegar emprestado algumas palavras de Herbert Marcuse, filósofo que dedicou sua vida ao estudo dos limites e possibilidades de uma mudança radical na sociedade capitalista, mudança radical quer dizer mudança das necessidades humanas, daquilo que desejamos, que sonhamos, que imaginamos. Mudança radical quer dizer também, pensar nas possibilidades de uma sociedade sem violência, sem exploração, “a possibilidade de uma sociedade sem destruição da natureza, onde o silêncio e a beleza se tornem necessidades determinantes” (Marcuse, 1999, p. 110-111). Portanto, essa radicalidade implica não somente uma mudança das bases materiais da sociedade, mas também da maneira como nos relacionamos com esse mundo.

Tanto a noção de radicalidade, de Marcuse, como a noção de Bem Viver, de Acosta, sugerem uma reconciliação do homem com a natureza, seja no âmbito da subjetividade humana, seja no âmbito do mundo físico. Ora, quando associamos essas duas noções parece que adentramos num campo cada vez mais onírico e utópico.

E é com essa ideia de utopia em mente que devemos pensar o nosso próximo eixo: a imaginação. Todos os conceitos apresentados neste texto podem parecer ao leitor uma viagem utópica, isto é, um delírio, um sonho impossível e impalpável. Segundo Acosta (2019, p.69), “O Bem viver é, por um lado, um caminho que deve ser imaginado para ser construído, mas que, por outro, já é realidade”. Como algo pode ser, ao mesmo tempo, realidade e imaginação?

A contradição exposta acima é entre aquilo que é e aquilo que pode ser. Na tensão entre a realidade atualmente estabelecida e a possibilidade de uma nova forma de vida podemos encontrar métodos de recusar aquilo que impede a mudança; recusar a exploração do ser humano e da natureza, recusar as condições de vida que nos limitam e nos fazem sonhar apenas com o “viver um pouco melhor”.

Agora, podemos nos perguntar: quais são os entraves para o Bem Viver? O que tem impedido essa mudança? Evidentemente, não pretendo responder a essas perguntas, uma vez que não são perguntas fáceis de serem respondidas. Porém, elas apontam para uma profunda conexão entre o pensamento utópico e a transformação da realidade.

Quando o contraste entre o que é e o que pode ser nos causa um determinado estranhamento, passamos a reconhecer a necessidade de emancipação e nos colocamos em um movimento de recusa, de denúncia e de protesto da realidade atualmente estabelecida. Talvez, pensar o Bem Viver, pensar uma mudança radical em direção a uma nova forma de vida, seja um convite para uma certa atitude: a atitude de manter e ampliar cotidianamente uma esperança crítica que nos mova rumo a uma mudança radical.


[1] Formadora da PAULUS Social, doutoranda em Serviço Social pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Unesp/Franca – SP. Possui graduação e mestrado em Serviço Social pela Unesp/Franca.


Referências

ACOSTA, A. O bem viver: uma oportunidade para se imaginar outros mundos. São Paulo: Elefante, 2014.

MARCUSE, H. Pela frente única das esquerdas. In LOUREIRO, Isabel Maria (org.). Herbert Marcuse: a grande recusa hoje. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.