A importância da escuta qualificada como metodologia essencial para o protagonismo e a autonomia das pessoas atendidas no SUAS

Autores: Celmar Brito de Sousa, Paulo Felix Pinheiro, Rafael Vieira Pires do Nascimento, Roberta Beatriz Cirillo Attene

Este artigo tem como objetivo provocar a reflexão profissional quanto à importância da metodologia da escuta qualificada dentro do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e apresentar o diferencial que pode proporcionar o fomento ao protagonismo e à autonomia das pessoas atendidas por esta política. O SUAS está pautado em um modelo de gestão democrático e colaborativo com visão no indivíduo e tem a escuta qualificada como uma metodologia de suma relevância. A escuta qualificada prevê uma forma de atuação profissional que busca o conhecimento aprofundado sobre o atendido, sobre o seu território, as suas necessidades e potencialidades, de maneira a contemplá-lo em sua totalidade. O que possibilita ainda distanciar-se da tendência da coisificação do sujeito que impacta na essência da Política Nacional da Assistência Social (PNAS). 

Diante de uma produção teórica insuficiente sobre a escuta qualificada no SUAS e a fim de contribuir metodologicamente com essa falta, este trabalho parte de uma visão multidisciplinar, pautada em pesquisas bibliográficas, na formação e na experiência profissional dos pesquisadores em Serviço Social, Psicologia, Pedagogia, Comunicação e História que compuseram esta equipe de pesquisa. Assim, possibilitando uma análise ampla sobre o ser humano e sobre a atividade profissional no SUAS. Para tanto, foram analisadas as formas de materialização da escuta qualificada por meio de seus paradigmas e resultados. 

Este estudo foi produzido em meio ao cenário pandêmico (Covid-19), o que denota ainda mais a relevância do tema pesquisado. Em momentos de crise é que a sociedade precisa de políticas públicas qualificadas e atentas às necessidades da população e adequadas à realidade. Esta pesquisa ressalta a relevância, no âmbito profissional, da escuta qualificada como metodologia de trabalho, denotando a necessidade de aprimoramento das pesquisas e a vivência dessa escuta como qualificação, aprimoramento e profissionalização do SUAS.

UM SERVIÇO PARA TODOS

Segundo o Ministério da Cidadania (MDS, 2020), o SUAS é um sistema público que organiza de forma descentralizada os serviços socioassistenciais no Brasil. Possui um modelo que permite a mobilização nas três esferas de governo para a execução e o financiamento da PNAS. Diante dos diversos aspectos históricos, econômicos, políticos, estruturais e sociais pelos quais o País passou, a Assistência Social se consolidou como política pública visando o enfrentamento das desigualdades sociais enraizadas. 

Conforme a normativa NOB/SUAS (2005), a proteção social prevê a garantia de atendimento a todos os cidadãos que se encontram em situação de vulnerabilidade e/ou de risco social, inserindo-os na rede de proteção social local. Sendo assim, o SUAS contempla o desenvolvimento humano e os seus direitos, por meio das garantias de segurança quanto à renda, ao convívio e/ou à vivência social, desenvolvimento da autonomia e sobrevivência a riscos circunstanciais.

ESCUTA QUALIFICADA: PROTAGONISMO E AUTONOMIA DO SUJEITO NO SUAS

A etimologia do termo escutar, segundo Priberam (2020), vem do latim auscultare, que significa “ouvir com atenção”. Como base teórica, o trabalho está pautado no diferenciar o ouvir como “receber o som” do escutar que “[…] dá trabalho, exige concentração e esforço” (PERFONCIO, 2017). Segundo o Ministério da Cidadania (MDS, 2019), a escuta qualificada deve ser compreendida no SUAS, como um processo transversal que busca entender as necessidades e potencialidades dos usuários. A escuta qualificada tem como objetivo, compromisso e responsabilidade, por meio da leitura que contemple a realidade do atendido como um todo, considerando os aspectos socioculturais, econômicos, questões de gênero, raça, fatores psicológicos, emocionais e territoriais, ou seja, quaisquer aspectos que sejam de relevância na vida dos que são contemplados por esta política. 

A etimologia da palavra protagonismo propõe o fortalecimento do personagem principal de uma narrativa (PRIBERAM, 2020). Para Farias e Varela (2016), alcançar o protagonismo social é permitir ao sujeito contemplar sua plenitude, participando ativamente dos processos de decisão, consumo e produção, a partir da mediação das práticas sociais. É por meio do protagonismo social que o sujeito se torna peça principal e fundamental da transformação de sua própria realidade. 

Por meio do exercício de intermediação socioeducacional conjunta, há o desenvolvimento da autonomia, que é a capacidade de autogovernar-se, de dirigir-se por suas próprias leis ou vontade; soberania (MICHAELIS, 2020). Para Biestek (1960), o exercício da responsabilidade da autonomia é fundamental para o desenvolvimento da personalidade intelectual, social, espiritual e emocional, na livre escolha a partir do apoio social. 

Freire (1996) destaca que à medida que o indivíduo passa por determinadas experiências, e estas são mediadas por profissionais qualificados, criam-se circuitos neuronais que se fortalecem e consolidam registros. Na vida cotidiana, quando o sujeito enfrentar dilemas e desafios corriqueiros e/ou complexos, terá arcabouço de vivências acumuladas suficientes para ter condições de agir autonomamente. 

Com a metodologia da escuta qualificada, o profissional da Assistência Social permite que os atendidos possam falar por si, através de suas ações, aquisições materiais, sociais e socioeducativas. Um exercício permanente a partir da convivência, da criação de vínculos com o sujeito e através da postura curiosa e aberta que assume e, ao mesmo tempo, provoca o sujeito a agir de maneira consciente.

PARADIGMAS DA ESCUTA QUALIFICADA NO SUAS

Apesar de um dos principais alicerces da Assistência Social ser o modelo de gestão participativo, o que se tem percebido, na maioria das vezes, é que se vivenciam as práticas mecanizadas e burocratizadas, decorrentes de inúmeros fatores, destacando o evidente contraste entre o conceito e a materialização das orientações propostas na política. 

A vivência da escuta qualificada não se reduz a fins de registros técnicos obrigatórios, mas propõe uma verdadeira amplitude do processo pautado na visão global do ser, de suas necessidades e potencialidades. Esta ação demanda tempo, confiança e construção de vínculos, para que ocorra o exercício de reconhecimento e respeito das camadas inerentes ao indivíduo. 

Entretanto, por exemplo, é definida na normativa NOB/ RH (PNAS), a instauração de um CRAS (Centro de Referência da Assistência Social) com oito profissionais para cada 5 mil famílias referenciadas. Isso resulta em uma incapacidade estrutural de atendimento à população referenciada para o equipamento e que legitima uma ação limitada e precarizada, não permitindo assim, assegurar os direitos fundamentais da população contemplada e realizar o serviço na qualidade prevista no SUAS. 

Existe também a tendência das políticas sociais de negar a autonomia do sujeito quando elas reproduzem acriticamente o pensamento vigente de coisificação e ultrarresponsabilização do indivíduo pelos conflitos vividos. A Assistência Social como política pública inserida nesse contexto é constantemente compelida a não contemplar o indivíduo em sua totalidade, mas a atuar por meio de um crivo sistemático que apenas vislumbre a manutenção da produção, validando os atendimentos a dados e às informações documentais e não ao conhecimento aprofundado do ser e do cenário que o envolve. O início do processo de transformação da escuta ocorre de forma individual por parte do profissional, já que a formação educacional do País não ensina a escutar o outro na totalidade (BARROCO, 2006), necessitando de um apoio para sua realização no atendimento social que fomente o protagonismo e a autonomia do sujeito. 

A incidência destes fatores é um empecilho ao desenvolvimento de uma escuta qualificada presente e ativa dentro da Assistência Social. E esse obstáculo, de uma acolhida qualificada pela escuta, se coloca como um agravamento na garantia dos direitos sociais. Tudo isso em um período em que o mundo, e especialmente o Brasil, tem vivenciado uma pandemia é ainda mais preocupante. Conforme indicado pelo CRAS de Campinas (AcidadeOn, 2020), um dos principais munícipios que sistematiza e documenta seus atendimentos, o qual registrou um aumento de 137% de procura pelo atendimento desde o começo da pandemia de COVID-19, ou seja, quando mais se precisa de escuta e acolhida, menor a possibilidade de atendimento diante das limitações da ordem vigente. 

Com base nas pesquisas realizadas, diante da alta demanda de atendimentos na Assistência Social, da ausência de análises teóricas sistematizadas sobre a escuta qualificada no SUAS e dos quadros profissionais reduzidos, da tendenciosidade de coisificar os indivíduos e suas demandas, depreciando os processos sociais e culturais em que aquela população se encontra inserida, percebe-se a dificuldade da atuação profissional pautada nos aspectos fundamentais da Constituição Federal de 1988 e dos princípios e diretrizes da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS, 1993), PNAS (2004) e SUAS (2011). 

A consideração da escuta qualificada como metodologia a ser materializada no cotidiano da prática profissional no SUAS, objetivando o desenvolvimento do indivíduo e sua realidade, permite criar caminhos e possibilidades para a concretização do protagonismo e da autonomia do sujeito, endossando o valor das particularidades, potencialidades e as necessidades da pessoa atendida. Este estudo propõe, portanto, a reflexão dos profissionais do SUAS sobre a possibilidade de ampliar a vivência da escuta qualificada, mesmo diante das limitações, considerando o valor da vivência para com o atendido, ampliando as possibilidades do sujeito frente à sua história e vida, e proporcionando a essência da Assistência Social. Sugere-se, portanto, a continuidade deste estudo, que inicia com a análise e o conhecimento teórico multidisciplinar para uma visão também da pesquisa de campo com dados do impacto da metodologia na vida dos atendidos, fatores estes não identificados em atuais pesquisas. 

*As referências bibliográficas podem ser lidas no trabalho completo.

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