A Assistência Social na pandemia

Autor: Alberto Nascimento

Passado mais de um ano, a pandemia da Covid-19 ainda nos surpreende cotidianamente. Mesmo com a chegada da vacina, as transformações nas rotinas diárias permanecem e não há expectativas claras de retorno à “normalidade”. 

A assistência social tem desempenhado, em conjunto com outras políticas, um papel essencial para a manutenção da vida neste delicado momento. Renata Aparecida Ferreira, que atuou como diretora da proteção social básica no Ministério da Cidadania (nomeado a época como Ministério do Desenvolvimento Social), entre os anos de 2016 e 2018, fala sobre o importante papel dessa política pública: “Para falar deste papel é importante lembrar que estamos falando de uma pandemia que traz desafios não apenas no campo sanitário e de saúde pública, mas também econômicos e sociais. A assistência social é uma área diretamente impactada, e seu papel nesse momento é garantir o acesso aos direitos básicos de todo cidadão brasileiro. Neste momento, os direitos básicos assegurados pela Constituição são colocados em cheque, à medida que os cidadãos estão desprotegidos, seja pela ausência de renda, seja pela ausência da sua integridade de saúde, ou por todos os agravos e impactos que a pandemia coloca à sociedade brasileira. Então, garantir as seguranças afiançadas de acolhida, sobrevivência, convivência, renda e autonomia é o papel formal da assistência social e, por meio dessa garantia, lembrar que os direitos básicos precisam ser assegurados”. 

Carlos Eduardo Ferrari, formador da PAULUS e ex- -presidente do Conselho Nacional de Assistência Social (2010-2012), expressa a necessidade de mudança surgida diante da atual conjuntura: “Na pandemia, a assistência social acaba se transformando, mas não transformando suas seguranças afiançadas. Não dá tempo para qualquer política pública reescrever seus compromissos, mas é óbvio que ela se transforma, pois as demandas são outras. Vamos pegar o exemplo da assistência, que tem como seguranças afiançadas a convivência, a acolhida, o desenvolvimento da autonomia e o acesso à renda. Pegando esses exemplos, é óbvio que a convivência é completamente repensada num momento em que o afastamento presencial é algo essencial para que as pessoas continuem vivas. Há que se pensar o processo de convivência numa perspectiva de afastamento social. Aproveitando-se, inclusive, de ferramentas on-line, mas não só isso; cuidando do convívio familiar, estimulando esse convívio de tal modo que se possa enfrentar ou prevenir situações de violência doméstica; cuidando do desenvolvimento da autonomia, de modo que as pessoas reivindiquem seus direitos, que agora passam a ser mais centrais em suas vidas, e se posicionem para acessá-los. Direitos, por exemplo, como o enfrentamento da extrema pobreza e o acesso a políticas de segurança alimentar”. 

Mas é, de fato, possível a atuação à distância na assistência social? Sendo uma política que atua prioritariamente com atendimento direto ao público, é necessário refletir sobre os arranjos necessários para que essa execução remota se dê de forma apropriada. Ferrari sinaliza que sim. “Como qualquer política pública, a assistência se beneficia e se desafia a ressignificar e recondicionar seu atendimento a partir das possibilidades de tecnologias de informação. É possível fazer um trabalho à distância, assim como qualquer ação de proteção social, excetuando algo muito próprio da assistência, que são os serviços de acolhimento. Nesses casos, você tem uma demanda concreta que é o espaço físico. Ou seja, serviços de alta complexidade demandam o prédio: ele faz parte do serviço porque ali as pessoas são acolhidas; pessoas que vivem na rua, pessoas que tiveram um rompimento de vínculo familiar por uma série de motivos, idosos, crianças, mulheres em situação de violência doméstica. Nesses casos, a política pública não se efetiva na sua completude à distância”, relata Carlos.

ATENDIMENTO À DISTÂNCIA E SUAS IMPLICAÇÕES NO SERVIÇO SOCIAL 

Para Aylanne Silvestre, educadora social no Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) em Recife (PE), as dificuldades surgidas nessa adequação ao atendimento à distância são notáveis. “Em minha opinião, depois de um ano vivenciando isso, acredito que não seja possível manifestar na íntegra o que o SCFV propõe à distância. Não é possível porque não alcançamos nem 40% dos usuários, e tem a dificuldade para acompanhar de fato as famílias e os participantes. Normalmente, a única maneira disponível de ser executada é virtual. Durante esse período de pandemia, perdemos contato com muitas famílias, porque elas não têm celular, não têm meio de comunicação à distância, não têm internet. A única forma possível para o contato com essas famílias seria a presencial; ou seja, a ida dessas famílias ao espaço de execução do serviço ou a visita familiar, e essas duas opções não são possíveis no momento”, afirma. 

Na opinião de Renata Aparecida Ferreira, especialista no tema da proteção social básica no Ministério da Cidadania, um dos principais desafios que a pandemia coloca para a assistência social é de fato conseguir efetivar um trabalho social de atendimento e de garantia dos direitos num contexto à distância, já que o atendimento presencial está inviabilizado há um ano e deve permanecer com essas restrições necessárias por um período indeterminado. Para ela, essa mudança na forma de garantir o acesso do cidadão ao direito tem colocado reflexões importantes para a rede e mostrado o quanto a assistência social precisa acompanhar as mudanças não só tecnológicas, mas de convívio e de relacionamentos. “Eu acredito que é possível fazer assistência social à distância, desde que ela esteja conectada no contexto de uma gestão estratégica de inovação, na sua forma de operacionalizar tecnicamente e metodologicamente, mas principalmente que ela esteja também preparada para ofertar ao cidadão a acessibilidade necessária aos meios digitais”, explica. Renata reforça que, para o atendimento, é necessário que o cidadão tenha condições de acesso aos meios digitais para ser atendido de forma adequada. Segundo ela, o tema é também relativo; conforme o território, em muitos lugares no interior do país, onde há um acesso precário à internet, por exemplo, muitas comunidades estão resgatando estratégias como a rádio comunitária, e a assistência social faz uso desse tipo de instrumento, que ajuda na aproximação da população, do cidadão e da comunidade. Tais recursos auxiliam a assistência social a desempenhar com as famílias um trabalho pautado no fortalecimento de vínculos familiares e comunitários.

MANUTENÇÃO E GARANTIA DOS DIREITOS BÁSICOS EM UM NOVO CENÁRIO

Renata Ferreira sinaliza que a assistência social deve manter em vista seu comprometimento com suas seguranças afiançadas. “No contexto de uma crise sanitária, em que a área da saúde é impactada, fica evidente que um dos principais direitos de acesso nesse momento é o direito à alimentação adequada, o direito humano ao alimento apropriado, assim como o de acolhida para aqueles que realmente demandam uma situação de maior vulnerabilidade. A assistência, sem dúvida alguma, está desempenhando um papel importante para garantir o mínimo para a sobrevivência dos mais impactados, entendendo que a garantia dos direitos sociais básicos é necessária para atravessar esse momento. Embora ela não dê resposta sozinha: ela depende de outras políticas para alcançar essa totalidade de direitos”, conclui. 

Ferrari também pontua a mesma necessidade. “Quero ainda destacar aqui a centralidade do acesso à renda, uma segurança afiançada que era muito própria, pelo menos no senso comum, muito reconhecida como destinada a públicos com características muito reafirmadas pelo inconsciente coletivo. Com o advento da pandemia, milhões de pessoas, pequenos comerciantes, trabalhadores do setor de restaurantes, bares, prestadores de serviços na área da estética, muitos desses profissionais passaram a demandar a política de transferência de renda popularmente batizada como ‘auxílio emergencial’, mas é importante destacar que isso é uma nomenclatura dada a uma política de transferência de renda emergencial do Governo Federal. Para além dela, existem também estratégias de transferência de renda em âmbito estadual e municipal. Tudo isso precisa ser compreendido como estratégias de proteção social no âmbito da assistência, que não se dá de maneira isolada; ou seja, junto com a transferência da renda, é essencial que a política de assistência social continue ofertando seus serviços que promovem a convivência, o desenvolvimento de autonomia, a acolhida, enfim, que a política continue funcionando, articulando seus usos e benefícios”, enfatiza. 

Carlos Eduardo Ferrari lembra que assim como todas as outras políticas públicas, a assistência não estava pronta, porque a pandemia surgiu como um tsunami para gestores públicos e para a sociedade em geral. Segundo ele, houve a necessidade de repensar e redesenhar a atuação do setor, readequando instrumentos normativos, prazos, a relação entre entes federados, entre sociedade civil e o Estado, e a relação entre organizações da sociedade civil e o controle social. 

Renata Ferreira compartilha dessa opinião, destacando também a conjuntura histórica: “A assistência não estava pronta porque é uma política que seguia um processo de consolidação. Sabemos que o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) no Brasil ainda apresenta lacunas importantes a serem observadas e consolidadas. A própria rede de Proteção Social Especial de média e alta complexidade ainda não está consolidada em sua totalidade, seja em formato regional ou local. Ainda temos um abismo muito grande de estrutura de sistema, e esse processo de consolidação ainda está em curso. Mas não só por isso, costumo dizer que a assistência não estava preparada no seu aspecto técnico, de resposta. O tema chamado ‘emergências socioassistenciais’, conceituado no SUAS, que trata de grandes eventos emergenciais e situações de desastres, já vinha sendo tratado pela assistência há algum tempo. Se observarmos o próprio plano decenal, ele já traz, não só em suas metas e nos indicadores estabelecidos, mas principalmente no seu diagnóstico, a previsão de um aumento cada vez maior das situações de desastre e emergências no país, das mais diferentes ordens: não só apenas relacionadas às questões climáticas, mas também a emergências sociais. Só não imaginávamos que teríamos uma pandemia chegando de forma tão repentina como temos vivenciado há um ano no Brasil”. 

Na opinião da especialista, é urgente que esse tema seja tratado e que a assistência social seja reconhecida como uma política pública essencial à sobrevivência, à cidadania e à dignidade, para que, a partir disso, ela se fortaleça frente as mais diversas situações que possam ocorrer no Brasil e no mundo. Para Renata, é importante lembrar que um dos campos mais frágeis da assistência é a intersetorialidade. É necessário pautar também a importância de uma convergência entre setores para que, de fato, possa haver respostas efetivas para os inúmeros problemas sociais existentes, sobretudo, para os impactos gerados pela pandemia e para novas situações de emergência que poderão surgir. Segundo ela, a assistência precisa ser reconhecida não só como essencial, mas como uma política intersetorial, que compõe, com outras políticas públicas do país, esse guarda-chuva protetivo tão necessário. 

Por fim, Renata sinaliza como as mudanças elaboradas agora podem permanecer no futuro da atuação da assistência social. “O atendimento à distância, assim como a gestão do trabalho e do trabalhador da assistência social no trabalho remoto, deve permanecer no pós-pandemia, ser absorvido nas rotinas e transformado em mudanças definitivas. Por mais que atuemos no campo das relações sociais, numa dimensão muito subjetiva das relações humanas, de fato conseguimos encontrar um caminho. Creio que, no dia a dia, essas modificações no atendimento à distância ou da gestão do trabalho à distância têm se tornado ferramentas importantes para avançar e aprimorar o trabalho que hoje a assistência social desenvolve. Para mim, muitas das ações terão mudanças definitivas”, assinala. Para ela, talvez seja necessária uma avaliação de impacto no atendimento à distância, uma vez que é algo recente para a assistência social, mas é importante a adesão a esse tipo de ação, para entender como o cidadão responde às mudanças, como o atendimento adentra no universo subjetivo e cotidiano das famílias, ou seja, como ocorre a efetivação do trabalho social. “Boa parte das mudanças será absorvida, como por exemplo a gestão do trabalho, o planejamento, a capacitação, a formação, a operacionalização técnica e o atendimento, levando em conta a importância de avaliar a atuação nesses campos”, conclui.

*Alberto Nascimento formado em Jornalismo pela FAPCOM, atua como Analista de Projetos Sociais na Assistência Social PAULUS.

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