Corpoterritorialidade – O encontro das margens

Autores: Maurício Rossini dos Santos, Mira Lopes

No dicionário, “comunidade” se refere à noção de algo comum a diversos indivíduos. Dada a dimensão territorial de nosso país, sua diversidade e multiplicidade, o que seria comum a todos? Qual ou quais elementos poderiam representar o Brasil do ponto de vista do sentido imediato que a palavra “comunidade” desperta? 

Diferente do dicionário, no imaginário brasileiro, comunidade é a periferia, o subúrbio, a “quebrada”, a margem – nem sempre nas margens da cidade, mas sempre marginalizada. Diante disso, a formação foi contornada por essa ideia da comunidade como periferia e ocupou-se em dialogar com os participantes sobre as alternativas para o cenário atual, sempre considerando a potência em lugar da escassez. 

Para retratar as periferias do Brasil, se fez necessário que falássemos sobre o lugar que o país ocupa no mapa, geográfica e politicamente, apresentando aspectos econômicos e sociais que constituem o Brasil hoje e apontando como esses elementos globais, entrelaçados com a realidade interna, possibilitaram a geração dos lugares os quais denominamos “comunidades”. 

Um elemento histórico indissociável do surgimento das comunidades foi o processo de escravização de povos trazidos da África para o Brasil e da população nativa, os indígenas. O uso da mão de obra cativa, alicerce de todas as antigas civilizações (GOMES, 2019, p. 64), toma novo contorno com o surgimento da ideologia racista pela qual a condição de escravo passa a ser diretamente vinculada ao tom da pele. Assim, a pessoa não branca é pertencente a uma sub-raça que, apenas em cativeiro e sob a tutela dos brancos, poderia ser considerada, por ventura, humana de fato (GOMES, 2019, p. 73). 

É da tardia e mal entendida “libertação” dos escravos, permeada por outros fatores correlatos, que as comunidades do Brasil são herdeiras. Salvaguardadas as peculiaridades de cada região do país e das comunidades que as integram, todos somos, sem exceção, frutos do processo de colonização e, consequentemente, da escravidão perpetrada pelos europeus. 

No curso da história, outros fatores foram sedimentando essa herança nefasta: o próprio sistema capitalista, o processo de industrialização, a divisão do trabalho e demais políticas que sustentaram e ainda sustentam a manutenção das desigualdades no Brasil. 

É dessa macrovisão que partimos para, em sequência, abordarmos uma perspectiva sobre o próprio corpo – aquele que reconheço para além da dimensão orgânica – e sua relação com o espaço. Seguimos então para a relação mútua e colaborativa entre esses corpos na construção de alternativas locais para o enfrentamento das desigualdades sempre presentes e agravadas neste momento de pandemia. 

CORPO-TERRITÓRIO

Ou seria um corpo-lugar? O conceito de território, amplamente discutido e alvo de fortes tentativas de redefinição nas últimas décadas, trata-se — em uma primeira aproximação —, fundamentalmente, de “um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder” (SOUZA, 1995, p. 78). Naturalmente, tal definição deve levar em conta o debate sobre o conceito de poder, o que não nos cabe realizar neste trabalho. Mas é fato que nossas discussões consideram as relações de poder que formam os mais diversos corpos, tornando o conceito de lugar mais adequado a partir da ótica adotada na formação. 

O significado de lugar, apesar de sua acepção cotidiana e de muitas vezes se fundir ao significado de espaço, é dotado de carga simbólica e, “à medida em que o conhecemos melhor e o dotamos de valor”, o espaço vai se tornando lugar, sendo este menos abstrato que aquele (TUAN, 2013, p. 14). Sendo assim, o conceito de lugar se assemelha ao conceito de território, porém não é a dimensão do poder que se apresenta em primeiro plano, e sim a dimensão cultural-simbólica, e a partir dela as identidades, a intersubjetividade e as trocas simbólicas vão construindo as imagens e sentidos de lugar — ou dos lugares — enquanto espaço vivido e percebido (SOUZA, 2016). 

Como nos diz Lefebvre (1986[1974], p. 199), “cada corpo vivo é um espaço e tem seu espaço: ele produz no espaço e produz o espaço”. Da mesma forma, o corpo também é produzido pelo espaço. Ailton Krenak (2020) adiciona à discussão: 

Pertencer a um lugar é fazer parte dele, é ser a extensão da paisagem, do rio, da montanha. É ter seus elementos e cultura, história e tradição nesse lugar. Ou seja, em vez de você imprimir um sentido ao lugar, o lugar imprime um sentido à sua existência. 

Assim, da mesma forma que só se compreende o ser ao entender sua territorialidade, só se compreende o território ao se entender os corpos ou a partir da conjugação entre corpo individual e corpo social” (HAESBAERT, 2020, p. 86). Podemos entender, portanto, o corpo — ou a corporeidade, essa “linguagem estrutural que transpassa o corpo” (LINDÓN, 2012, p. 703) — como um primeiro lugar, o primeiro espaço de reconhecimento do sujeito, onde se encontra toda a carga subjetiva que o torna um no todo e um com o todo e que é moldado através dos conflitos internos e externos. O corpo, então, é um lugar que se forma, deforma e transforma a partir das experiências socioespaciais. Portanto, como nos alerta Nogueira (2014, p. 40), é momento de estabelecermos relações com as pessoas que habitam os lugares para melhor compreendê-las ou corremos o risco de pensar a sociedade apartada do lugar — e dos corpos-lugar —, “a-especializada”, um lugar sem pessoas, onde as relações entre os lugares são apenas técnicas. Não há forma de compreender e transformar o espaço que não seja através dos corpos que o habitam.

CAFEZIN

Desde o início, a história em quadrinhos “Heróis da Convivência”, componente do Kit PDEC 2020 – ideia surgida magistralmente a partir dos percursos elaborados e desenvolvidos pela equipe do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculo “De Olho no Futuro” – serviu de mote para a condução da conversa. Desse modo, ilustrações diversas e a identificação de “heróis” locais foram parte significativa do processo. 

Durante o percurso, surgiu a proposta de criarmos tirinhas ao final de cada encontro. Para isso, foi criada uma personagem com a função de representar partes tão distantes e diversas: o Cafezin, idealizado e criado pelo grupo em geral, sob a coordenação dos educadores da PAULUS. A personagem é um copo estilo americano, servido de café até a metade, que lança no ar, por sua fumaça, as frases, poesias, ideias e trocas estabelecidas pelos participantes do processo formativo. 

Essa personagem tem a pretensão de ser a expressão das alternativas criadas pelos profissionais dos SCFV na atual conjuntura. Revela também as saídas encontradas pelas lideranças locais que não necessariamente têm atuação em equipamentos da rede socioassistencial ou qualquer outra rede garantidora de direitos, ao menos não de modo formal. Tais lideranças estão no enredo das iniciativas populares coletivas, de arte, cultura e educação, redes colaborativas, às vezes vinculadas a grupos religiosos – de todas as crenças –, associações comunitárias ou iniciativas espontâneas de moradores do território. São essas redes, articuladas ou não entre si, que vêm proporcionando às comunidades o aporte necessário para a sustentação da vida com dignidade. Essas iniciativas, vinculadas a medidas emergenciais adotadas pelo governo federal, têm garantido, por ora, que se evite o tão temido colapso social. 

A personagem se ocupou em ouvir as vozes daqueles que abriam o microfone ou escreviam no chat. Ela escutava, dialogava, sintetizava, ampliava e depois dizia: “Cafezin ouviu de Fernanda Rieta a seguinte frase: ‘ler a comunidade é ouvir as pessoas’”. A cada gole de palavra, Cafezin ganhava corpo e território, lugar e espaço. Foi se deixando habitar que ele se tornou quem é. Foi com cada gole que o vídeo e o fanzine foram elaborados como entrega resultante dessa caminhada. 

Tema: Comunidade 

Participantes: 93 

Municípios: 32 

Instituições públicas e privadas: 66 

Encontros virtuais entre agosto e novembro de 2020: 10 

Principais resultados: fanzine e vídeo

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