Entre quatro paredes – Distâncias e encontros nos tempos da COVID-19

Autor: Alberto Nascimento

Você de novo, Negão?”, ele diz arfando por baixo da máscara. É a terceira vez desde o início da quarentena que ele me vê. Antigamente eu trocava o botijão de gás a cada quatro meses; agora, com os almoços diários e minhas aventuras pela panificação, mal consigo fazê-lo durar um bimestre. 

Imagino que meu camarada, Sísifo retinto, sorri com seu rosto coberto quando respondo que a vida agora é essa: cozinhando em casa todo dia. Ofereço água e, como de praxe, ele recusa. Pega o botijão vazio e segue seu caminho escada abaixo. Não foi punido por enganar a morte, como o titã grego, mas é obrigado, por uma triste e inexorável conjuntura social, a carregar um peso cíclico e diário, enquanto dança ao redor dela nesses dias virulentos. 

Ele parte, talvez feliz em descer as escadas com um botijão vazio – um fardo evidentemente menor –, enquanto eu permaneço aqui, limpando o recipiente e o carregando para dentro. Mesmo reconhecendo minha sorte em poder trabalhar sem sair de casa, não consigo deixar de considerar tudo que entra aqui como um peso, que demanda um repetitivo rito de desinfecção com álcool em gel. 

Com um novo gás, fica mais fácil reestabelecer alguma leveza na casa. Um café fresco é o primeiro passo obrigatório para transformar esse fim de sexta-feira domiciliarmente encarcerado em algo aproveitável. Apesar de socialmente distante, não estou isolado. Tenho a alegria de ter a companhia da minha namorada: ideia dela, mas digerida pelas duas partes com um misto de alegria e medo. Recordo-me de ler, no começo da quarentena, textos sobre casais de longa data se separando por conta da convivência excessiva e temi que tal sina se replicasse aqui, numa relação de poucos meses. Agora, cinco meses depois, tenho mais medo de imaginar o que teria sido desse tempo se o tivesse passado apenas na minha companhia. 

Estivesse sozinho, o desfecho da semana se daria com pizza e marasmo, mas a companhia me dá a disposição para viver a vida que ensaiara para mim sem nunca ter dado de fato o primeiro passo. Vou à cozinha, reviro os armários e, dominado da mesma febre dos vizinhos virtuais, começo meus ritos de padeiro amador. 

Minha mente se esvazia enquanto alimento o fermento natural para o pão de sábado e escaldo o polvilho para o pão de queijo. A cozinha, que sempre foi refúgio para as angústias do mundo lá fora, agora virou um jardim para colorir e perfumar a vida aqui dentro. O sovar das massas substitui os passeios sem destino aos quais me dedicava no fim dos dias para relaxar; o cheiro de pão fresco toma o lugar dos fins de semana com os amigos para estimular os sentidos e esquecer a rotina. 

Tentei as reuniões virtuais, mas desisti depois de algumas poucas. A verdade é que, para mim, ver minha família encolhida pela tela tem um efeito contrário: mais reforça do que alivia a saudade. As vozes moduladas pela caixa de som e a linha de conversa que segue um assunto único em todo o grupo – ao contrário dos temas plurais e desencontrados das nossas usuais balbúrdias – não me dão a sensação de presença, mas sim de uma distância enorme entre nós. Nessas horas, sinto-me nos versos de Adriana Calcanhoto: “pela janela do quarto, pela tela, pela janela, eu vejo tudo enquadrado”. Fecho o computador e, agora, enquanto o dia se encaminha para seu fim, ecoa a voz grave de Mano Brown: “um dia a menos ou um dia a mais, sei lá, tanto faz, os dias são iguais”. 

Com as medidas de distanciamento social relaxando, sinto que eu e meus amigos nos tornamos uma minoria; enquanto vejo pelas redes sociais cada vez mais encontros e aglomerações, eu temo em compartilhar minha vida de sedentário e me manifesto apenas através das minhas recém-adquiridas habilidades de padeiro. 

Assim como a massa do pão vai ganhando força e novos contornos conforme a sova, a palavra “sedentário” mudou de sentido nos dias de hoje. Talvez não para um sentido novo, mas sim para um significado antigo, agora reclamado, de permanência em contraste com a vida nômade dos meus ancestrais. Permanecer em casa não se traduz mais em ficar estático, mas simplesmente em buscar uma maneira mais eficiente de permanecer vivo. 

No começo, eu refletia sobre meu privilégio de poder me recolher enquanto há muitos sem essa opção. Hoje, me ocupo muito mais no esforço de entender aqueles que podem, mas não o fazem. Será também um privilégio meu ter encontrado, aqui dentro, bons paralelos da vida lá fora? A quem tem a oportunidade de permanecer em casa, mas ainda assim mantém os hábitos nômades de nossos mais antigos ancestrais, faltará alguma outra coisa? 

A primeira resposta que grita é “uma condição social que permita essa estada”, mas esta reflexão se foca naqueles que a têm. Fujo do chavão de “buscar fora o que não se encontra dentro”, supondo que talvez ocorra justamente uma fuga dos novos espaços encontrados nas casas, até então pouco exploradas. Muitos falam do desafio da convivência excessiva diante do “novo normal”, mas acho estranha a suposição de uma dimensão da vida ser excessiva a ponto de insustentável: mesmo diante das mais turbulentas enchentes, nunca pensei que o mundo tivesse “água demais”; apenas que seus caminhos de vazão estão torpemente arranjados. 

“É curiosa essa variação da cólera que mata a todos com um tiro de execução na nuca”. Lembro-me do doutor Juvenal Urbino enquanto, do alto, também vejo se desenrolar um processo bem mais lento de execuções…são churrascos e festas de aniversário. Tornamo- -nos uma versão perversa da celebração mexicana do dia dos mortos; ao antecipar a festa, adiantamos também a partida. 

Olho para minha namorada, minha auspiciosa companheira nessa jornada estática. Amo-a, mas, mesmo sempre tendo invejado o desfecho de Florentino Ariza e Firmina Daza, não espero continuar neste barco da pandemia por toda vida.

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