Pane no sistema

Autor: Carlos Eduardo Ferrari

Falando sobre a composição de “A admirável chip novo”, Pitty conta que vivia o início de sua jornada criativa. Sozinha, trancada em seu quarto, a então jovem garota refletia sobre o início da vida conectada. Nascendo para a vida de compositor junto com a “explosão” da internet, ela já sentia as ameaças de caráter imperativo decorrente da vida na rede. A artista lembrou, então, da obra de Aldous Huxley e promoveu um “upgrade” pessoal e poético na distopia, dando voz a um canto que inicia denunciando uma “pane no sistema”. Esta e outras histórias são contadas pela própria Pitty numa entrevista disponível no You Tube. 

Nesta altura do campeonato você deve estar se perguntando: “Mas qual a relação desse papo com a Assistência Social e com a pandemia?”. Pois é, caro leitor, para explicar recorro a Alex Blumberg e à sua eficaz proposta de estrutura narrativa XY. Funciona assim: conto-lhe uma história X para tratar de Y. Neste caso, lhes apresento uma história sobre o nascimento de uma canção dentro de um determinado contexto para que o cenário problematizado por ela me ajude a conversar com você sobre o momento que vivemos hoje. 

Testemunhamos, perplexos, nossas vidas serem brutalmente hackeadas por um vírus. Foram afetados todos os nossos sistemas de crenças, assim como as rotinas de consumo e as relações humanas cotidianas, desconfigurando códigos historicamente consolidados em diversos segmentos como educação, trabalho, política, artes, turismo, esportes, enfim, em toda parte em que podíamos vislumbrar ao menos algum vestígio de certeza. 

Em coluna publicada em 24 de junho deste ano na Folha de São Paulo, o jornalista Juca Kfouri fala de um artigo escrito pelo também colunista Jorge Valdano. Segundo Jucá, o ex-jogador argentino, que hoje escreve para o periódico El País, coloca em cheque a importância do futebol. Juca então, para defender seu ponto de vista, faz uma correlação entre o tempo de abstinência da bola na telinha que tem vivenciado com a ausência de abraços e sorrisos presenciais das netas. 

Exercícios dessa natureza, em que se colocam frente a frente prioridades aparentemente incomparáveis, têm sido frequentes em meses de efervescência reflexiva e propositiva, despertando “influenciadores” e “formadores” de opinião para uma espécie de chamado a se posicionar. 

Ao digitar este artigo, também me arrisco a correlacionar prioridades e contextos, problemas e soluções, me valendo de toda a licença histórica para teclar sem medo de errar. 

De início é importante esclarecer que quero falar sobre Assistência Social e tecnologia, olhando, é claro, para o contexto de pandemia e para o eventual “novo normal”, sobre o qual muitos têm comentado. 

Comecemos olhando pelo retrovisor. Veremos ao longe uma Assistência Social protagonizando um complexo “paradoxo tecnológico”: de um lado, soluções criativas, modernas e promissoras como o CAD Único e um conjunto de aplicações desenvolvidas pela Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação do SUAS; do outro, protocolos em papel, desintegração das redes estatais e não governamentais, e ausência de estratégias para trabalhar a inclusão digital dos usuários da política. 

Ao adentrarmos na “Era Corona”, tal contraste ganhou visibilidade, trazendo para os holofotes não apenas as perdas decorrentes de tamanha contradição, mas as fragilidades e possibilidades da Assistência Social como um todo. Essa política pública, que tem como principais ofertas as cinco seguranças afiançadas – desenvolvimento da autonomia, convivência, acesso à renda, acolhida e apoio/auxílio em situações de calamidade – não se conectou durante o distanciamento como poderia. 

Ao fazer essa afirmação, é preciso deixar claro que este texto não é sobre apontar culpados, nem tampouco um lamento tardio pelo que não se fez. Trata-se de uma constatação acerca de um fenômeno vivenciado não apenas pela Assistência, mas pelas políticas sociais como um todo. Como bem disse o escritor de ficção científica William Gibson, no longínquo ano de 2003, durante uma entrevista para o The Economist: “O futuro já está aqui, só não está igualmente distribuído”. 

Olhando então para o presente e o futuro, resgatar uma velha proposição que já apresentei em outras tribunas: precisamos que a Assistência Social tenha como sexta segurança afiançada a “conectividade cidadã”. Fazer valer essa ideia significa romper de imediato com velhas máximas, por exemplo, a negação do uso da tecnologia para a qualificação do convívio familiar e comunitário, pois, acreditem, ainda há muita gente por aí proibindo o uso das tecnologias em Serviços de Convivência. Promover a conectividade abre caminho para um trabalho consistente de desenvolvimento dos conceitos de empoderamento e participação em espaços democráticos, a partir de ferramentas de videoconferência e outras tantas desenvolvidas para a manifestação de opinião e voto. Não é simples defender uma proposta dessa natureza, principalmente quando o assunto é uma política com orçamento reduzido e uma infinidade de demandas que padecem de descaso e falta de respostas. Isso, no entanto, não invalida o fato de que a fórmula atual está longe de ser bem-sucedida. Ao aceitar o convite para escrever este texto, lembrei-me do famoso conselho público dado pelo CEO da Amazon Jeff Bezos, que disse: “Você precisa estar disposto a ser incompreendido se você for inovar”. 

Inspirado por ideias como essa e pelas possibilidades do presente, defendo a conectividade cidadã não apenas como uma segurança afiançada pelo SUAS, mas também como reconhecimento do acesso à internet enquanto direito universal, para todos. Notem que o caminho a ser percorrido é longo, porém ele precisa ser filosoficamente pavimentado. Trabalhadores, gestores, usuários, pesquisadores e tantas outras pessoas compromissadas com o SUAS precisam trazer a tecnologia para a centralidade dos debates, não apenas como mais um dentre tantos recursos importantes, mas como uma possibilidade de ressignificar a proteção social brasileira por meio das novas tecnologias de informação e comunicação (TICs). 

No âmbito da gestão, é preciso que o acesso à renda seja reafirmado como direito indissociável da inclusão no CAD Único. Isso permite que a tecnologia seja um poderoso aliado para mapear as vulnerabilidades individuais e coletivas, consolidando pontes que permitam aos beneficiários de recursos como o auxílio emergencial o acesso a serviços públicos que os ajudem a se preparar para o mundo do trabalho, suprir déficits de aprendizagem, consolidar redes de apoio, ter acesso a crédito e à troca de conhecimentos. 

Diante disso, cabe destacar que este texto não propõe o enfraquecimento ou a relativização da qualidade das experiências presenciais, mas a compreensão da necessidade urgente de um reposicionamento da Assistência Social para que ela possa verdadeiramente gerar respostas à altura dos desafios da seguridade social brasileira. Afinal, como cantou o grande Gil em uma atualização da profética “Pela Internet”: “Estou preso na rede que nem peixe pescado, é zapzap, é like, é Instagram, é tudo muito bem bolado”; e é claro que, além do ex-ministro e eterno poeta baiano, todos caímos na rede.

Se é fato que três em cada quatro brasileiros já estão na internet, é igualmente verdade que todos eles, em alguma medida, estão sendo afetados pelo fluxo de bits. Uma Política de Proteção Social que desconsidera isso é tão excludente quanto uma série de outros fenômenos de origem econômica e comportamental. Como qualquer abordagem disruptiva, se desejamos superar uma política analógica, é preciso desconstruir criativamente velhos entendimentos e velhas práticas, por meio da elaboração e validação coletiva de propostas concretas. 

Recorrendo a um insight de Mahatma Gandhi: “temos de nos tornar a mudança que queremos ver”. Fica então a pergunta, com uma torcida enorme pela resposta positiva: será que essa mudança é realmente desejada?

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